1. Em 1886, Nietzsche publicava Para além de bem e mal. A minha edição é lisboeta, de 1987. Na contra-capa, branca, consta um citado atribuído a Karl Jaspers: "é possível encontrar em Nietzsche, em cada julgamento o seu oposto. Dir-se-ia que tinha duas opiniões sobre tudo. Por isso se podem invocar passagens de Nietzsche em apoio de idéias aparentemente o mais inconciliável. A maioria dos partidos abrigava-se por detrás da sua autoridade: ateus e crentes, sábios metódicos e sonhadores, homens políticos e apolíticos, espíritos livres e fanáticos".
2. Talvez se tenha descoberto a chave para esse fenômeno - ao menos nos termos em que Domenico Losurdo afirma, Nietzsche possuía dois discursos, um, para a classe dominante, outro, para a classe dominada, e, não, não estou "interpretando" Losurdo, estou, meramente, transcrevendo-o, na prática, literalmente: "é necessário chegar à plena consciência de que um é o discurso destinado às classes dominantes e outro o que deve ser dirigido às classes subalternas: 'É preciso distinguir rigorosamente entre A e B' (XIII, 448)" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, p. 449).
3. Talvez agora de possa levar um tanto mais a sério o fato de que os discursos têm sentido relativos não apenas a seu autor, mas aos destinatários, aos referenciais a que se destinam - talvez, até, a história da recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX possa ser explicada justamente pela cada vez mais negligente desatenção a esse princípio básico, mormente entre filósofos e teólogos - os discursos, se fossem gente, poderiam dizer toda a sua potência polissêmica, que, na verdade, não passa da atualização dos possíveis leitores potenciais; todavia, são "obra", são registro de uma intencionalidade situada e historicamente dirigida, de modo que é aí, e só aí, que se pode pretender instalar o princípio de inteligência desse discurso. Naturalmente, para quem ainda acredita nisso...
4. Uma última observação. Começava a duvidar de que Losurdo pudesse ter lido o mesmo Nietzche que eu - sim, reconheço, algo presunoso de minha parte, mas, ainda assim, metodologicamente prudente. Todavia, insisti em retornar a uma das últimas obras de Nietzsche, justamente aquela a que me refiro aqui - Para além do bem e mal. Se havia dúvida, não há mais. O leitor ou a leitora, desconfiados como eu, poderiam gastar meia hora a ler o capítulo nono - O que é Aristocrático? Pronto, todas as dúvidas se dissipam.
5. Nietzsche parece ser um último representante daquela espécie de homem aristocrático, logo, insensível, de coração bruto, não quero dizer "mau", quero dizer, "de pedra", não tocado pelos valores a duras penas construídos, sim, pelos "escravos". Nesse capítulo, Nietzsche justamente fala dessas duas únicas morais que há - a dos aristocratas, soberanos, senhores, dominantes, e a dos escravos, da plebe, dos dominados. E aqui ele encara a alma da Natureza em toda a sua brutalidade e insensibilidade - com a placidez de quem tem consciência disso: "a 'exploração' não faz parte de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva: petence à essência do que é vivo como função orgânica fundamental, é uma conseqüência da verdadeira vontade de poder, a qual é justamente a vontade da vida - Admito que, como teoria, isto seja uma novidade - como realidade é o facto primordial de toda a história: sejamos pois honestos para connosco próprios até este ponto! -" (Nietzsche, Para além de bem e mal, Lisboa: Guimarães, 1987, p. 198).
6. Esse vínculo programático entre a exploração do outro, a exploração do senhor sobre o servo, do dominador sobre o dominado, a uma função fundamental da vida, a um predicado orgânico, remete-me, com tremor, a um aforismo que, até aqui, muito apreciei, de A Gaia Ciência - e que, agora, tremo de ter errado o real sentido da intencionalidade aristocrática que o animava, e que eu lia com o "espírito de escravo" que me anima. Ei-lo: "- A consciência. - A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por conseqüência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema" (Nietzsche, A Gaia ciência - Livro Primeiro, 11, Lisboa: Guimarães, 1996, p. 47).
7. Não posso condenar meu filósofo preferido. Só posso me perguntar se essas seriam suas reflexões - de resto, no mínimo inquietantes, porque tocam as questões fundamentais da Filosofia, diante das quais todo o resto é espuma -, se ele estivesse do mesmo lado que eu, se fosse um legítimo representante da "tradição dos escravos", daqueles que se recusam a aceitar o destino natural, que têm a ousadia de pensar que, contra todas as aparêcias, contra toda a história real dos homens e das mulheres, diante de meus olhos, diante da minha face, diante de mim, todos os homens me são iguais - e que a desiguladade não constitui, para essa hmanidade, um destino, mas uma construção do resíduo de operação natural que permanece entre nós. Será apenas quando sairmos definitivamente da Natureza que poderemos, afinal, desvencilharmo-nos da lei da Natureza, segundo a qual os fortes dominam os fracos. E, no entanto, não é justamente hoje o dia em que a moda é o retorno à casa Natureza?, o abraço civilizatório ao mundo natural?, o cântico reverente e devoto à Ecologia? O Capitalismo, meus amigos, está a enamorar-se da Ecologia - Deus e o Diabo chegarão a fazer um pacto de domínio? Estamos à beira de um precipício - e queremos avançar ainda mais rápido para dentro dele...
8. Cuida-me parar de ler por hoje. Corro o risco de eu mesmo sair a abraçar cavalos... Deixa-me, então, ir atrás do que Nietzsche não teve: uma Bel a quebrantar-lhe a dureza do coração...
OSVALDO LIZ RIBEIRO
2. Talvez se tenha descoberto a chave para esse fenômeno - ao menos nos termos em que Domenico Losurdo afirma, Nietzsche possuía dois discursos, um, para a classe dominante, outro, para a classe dominada, e, não, não estou "interpretando" Losurdo, estou, meramente, transcrevendo-o, na prática, literalmente: "é necessário chegar à plena consciência de que um é o discurso destinado às classes dominantes e outro o que deve ser dirigido às classes subalternas: 'É preciso distinguir rigorosamente entre A e B' (XIII, 448)" (Domenico Losurdo, Nietzsche, o rebelde aristocrata, Revan, p. 449).
3. Talvez agora de possa levar um tanto mais a sério o fato de que os discursos têm sentido relativos não apenas a seu autor, mas aos destinatários, aos referenciais a que se destinam - talvez, até, a história da recepção "metafórica" de Nietzsche no século XX possa ser explicada justamente pela cada vez mais negligente desatenção a esse princípio básico, mormente entre filósofos e teólogos - os discursos, se fossem gente, poderiam dizer toda a sua potência polissêmica, que, na verdade, não passa da atualização dos possíveis leitores potenciais; todavia, são "obra", são registro de uma intencionalidade situada e historicamente dirigida, de modo que é aí, e só aí, que se pode pretender instalar o princípio de inteligência desse discurso. Naturalmente, para quem ainda acredita nisso...
4. Uma última observação. Começava a duvidar de que Losurdo pudesse ter lido o mesmo Nietzche que eu - sim, reconheço, algo presunoso de minha parte, mas, ainda assim, metodologicamente prudente. Todavia, insisti em retornar a uma das últimas obras de Nietzsche, justamente aquela a que me refiro aqui - Para além do bem e mal. Se havia dúvida, não há mais. O leitor ou a leitora, desconfiados como eu, poderiam gastar meia hora a ler o capítulo nono - O que é Aristocrático? Pronto, todas as dúvidas se dissipam.
5. Nietzsche parece ser um último representante daquela espécie de homem aristocrático, logo, insensível, de coração bruto, não quero dizer "mau", quero dizer, "de pedra", não tocado pelos valores a duras penas construídos, sim, pelos "escravos". Nesse capítulo, Nietzsche justamente fala dessas duas únicas morais que há - a dos aristocratas, soberanos, senhores, dominantes, e a dos escravos, da plebe, dos dominados. E aqui ele encara a alma da Natureza em toda a sua brutalidade e insensibilidade - com a placidez de quem tem consciência disso: "a 'exploração' não faz parte de uma sociedade corrupta ou imperfeita e primitiva: petence à essência do que é vivo como função orgânica fundamental, é uma conseqüência da verdadeira vontade de poder, a qual é justamente a vontade da vida - Admito que, como teoria, isto seja uma novidade - como realidade é o facto primordial de toda a história: sejamos pois honestos para connosco próprios até este ponto! -" (Nietzsche, Para além de bem e mal, Lisboa: Guimarães, 1987, p. 198).
6. Esse vínculo programático entre a exploração do outro, a exploração do senhor sobre o servo, do dominador sobre o dominado, a uma função fundamental da vida, a um predicado orgânico, remete-me, com tremor, a um aforismo que, até aqui, muito apreciei, de A Gaia Ciência - e que, agora, tremo de ter errado o real sentido da intencionalidade aristocrática que o animava, e que eu lia com o "espírito de escravo" que me anima. Ei-lo: "- A consciência. - A consciência é a última fase da evolução do sistema orgânico, por conseqüência também aquilo que há de menos acabado e de menos forte neste sistema" (Nietzsche, A Gaia ciência - Livro Primeiro, 11, Lisboa: Guimarães, 1996, p. 47).
7. Não posso condenar meu filósofo preferido. Só posso me perguntar se essas seriam suas reflexões - de resto, no mínimo inquietantes, porque tocam as questões fundamentais da Filosofia, diante das quais todo o resto é espuma -, se ele estivesse do mesmo lado que eu, se fosse um legítimo representante da "tradição dos escravos", daqueles que se recusam a aceitar o destino natural, que têm a ousadia de pensar que, contra todas as aparêcias, contra toda a história real dos homens e das mulheres, diante de meus olhos, diante da minha face, diante de mim, todos os homens me são iguais - e que a desiguladade não constitui, para essa hmanidade, um destino, mas uma construção do resíduo de operação natural que permanece entre nós. Será apenas quando sairmos definitivamente da Natureza que poderemos, afinal, desvencilharmo-nos da lei da Natureza, segundo a qual os fortes dominam os fracos. E, no entanto, não é justamente hoje o dia em que a moda é o retorno à casa Natureza?, o abraço civilizatório ao mundo natural?, o cântico reverente e devoto à Ecologia? O Capitalismo, meus amigos, está a enamorar-se da Ecologia - Deus e o Diabo chegarão a fazer um pacto de domínio? Estamos à beira de um precipício - e queremos avançar ainda mais rápido para dentro dele...
8. Cuida-me parar de ler por hoje. Corro o risco de eu mesmo sair a abraçar cavalos... Deixa-me, então, ir atrás do que Nietzsche não teve: uma Bel a quebrantar-lhe a dureza do coração...
OSVALDO LIZ RIBEIRO
Um comentário:
Se Nietzsche tivesse uma mulher da envergadura de Bel, talvez ele estivesse vivo até hj e quem sabe, ainda estaria encarnando em vários personagens da história como ocorre no filme ORLANDO, A MULHER IMORTAL em que o personagem vai mudando e contando a história da Inglaterra perpassando as fases mutáveis.
Cheguei da muvuca na LAPA agora com 2 franceses, mas tô feliz, pq mesmo semi chapado de alcool, ainda consegui ler esse post sobre Nietzsche-Losurdo.
Je suis très fatiguè.
Au revoir
Merci beaucoup.
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