quarta-feira, 20 de outubro de 2010

(2010/520) Cada um sofre suas dores


1. No fundo, somos sós. A multidão é ilusória, melhor, artificial. Multidão há em formigueiros, em cupinzeiros, em colmeias, em cardumes. Entre nós, não há multidão. Quando há, trata-se justamente da cura artificial e breve dessa solidão eterna, a despersonalização por meio de rotinas orgânicas de psicologia de massa. Mas isso passa, ah, passa, e, quando passa, dói, e dói terrivelmente.

2. Há as drogas, também. Você pode se livrar dessa solidão terrível, dessa dor profunda, drogando-se. Os homens as descobriram, as drogas, há milênios. Mas passa. E você se droga de novo. Mas passa. E você acaba vivendo drogado. Ou bêbado, o que dá no mesmo.

3. Fala-se da orgia como saída para a subjetivação individualizante. Li sobre isso. Mas, confesso, não consigo entender bem o mecanismo. Só posso fazer referência a ele. Talvez, porque as orgias não sejam públicas, não tenhamos delas a idéia real do que são e do que oportunizam em termos reais de desumanização. Fico, pois, na referência "erudita".

4. No mais, a guerra, talvez, os jogos, quando mobilizadores das forças de despersonalização. Mas tudo isso é remédio provisório, e a posologia deve ser seguida à risca, pois o efeito passa, e, quando passa, a dor vem mais grave.

5. A religião pode ser esse entorpecente, como Marx o disse muitíssimo bem - esse ópio alucinante. Nesse caso, ela é bastante duradoura, e tanto melhor o efeito quanto mais você considerar-se uma peça, menos do que uma pessoa, um dente de engrenagem, um elo da corrente, isto é, quanto menos você se sentir como um sujeito vivo e livre, quanto mais budista e cristão e kardecista você for, menos você sofre, e, nesse caso, são bons remédios - não, não curam, porque não há cura para a solidão humana. Há, apenas, morfina. Na veia.

6. É que a solidão humana é um acidente do Universo. Primeiro, o Universo inventou a vida. Podem chamar o Universo de Deus, também, não faz diferença se, aqui, você é ateu, panteísta, deísta, teísta, o quer quer que seja - apenas aconteceu, e isso define as coisas. O mito por trás do acontecimento, nesse caso, pouco importa.

7. O fato, pois, é que, primeiro, criou-se a vida, depois, a vida em colônia, depois, a simbiose da vida em colônia, depois, a vida social. Até aí, tudo bem, porque a vida social animal é pré-programada. Quase se pode falar da comunidade como "o" ser em si, ao passo que seus membros são, apenas, contingenciais - são descartáveis, inclusive. Sumiu a formiga numero 1.234.720 - e quem sente falta?

8. Mas, aí, desgraça, um acidente qualquer e, bum!, surge a consciência. Desgraçada consciência, crudelíssima auto-consciência. Animais vivos não podiam ter consciência - é sofrimento demais em troco de um punhado de poesia.

9. Por isso compreendo os mitos, e parte de minha alma constrange-me de ser eu tão crítico. Do que se servirão os pobres desgraçados corpos humanos... sem mitos? Quereremos para eles a nudez de ver o Vazio? Melhor deixá-los com os mitos... conquanto os canalhas da política e da religião, não há lá grande diferença entre esses dois especialistas da canalhice, tão mais facilmente os manipularão, é o preço para não sofrerem, serem carne de açougue, vaca de presépio e massa de manobra... A alternativa? A dor... Por isso quem tentar libertá-los pode sofrer as conseqüências de seu ódio - e deve saber do risco.

9. Aos a quem o mito não surte mais efeito, resta a dor profunda e incurável. Aqui cabe até um sorriso, porque essa dor tem, ironia, seus momentos de cura... nos braços da amada. E só. Não há mais outro lugar onde o ácido não corroa a carne, salvo ali, naquele colo. Acho que Eclesiastes foi escrito por um homem - ou uma mulher (mas apostaria num homem, pelo exemplo dado da amada) - que adquiriu essa consciência da vida: tudo, absolutamente tudo, sem exceção, é vaidade, e a única coisa que dá paz, nesses casos, é entregar-se à simplicidade de amar a mulher amada. Eis aí, minha religião - e ela é bíblica, senhores!

10. Deixai-me, pois, com minha dor. Ela é a minha dor. O que de profundo é meu. E vou sorver a sua taça até a última gota, até que alguma morfina me traga de volta ao mundo social humano, essa invenção dos mitos que engendramos contra a dor.

11. Mas eu aviso aos navegantes - apenas uma dor me mataria: cantar a letra que Marisa canta. Essa dor me mataria, só essa - todas as outras são como que o fogo da forja dos harashim, enquanto esculpem, no bronze, a serpente das minas do sul de Israel. E pensar que te tenho, amor, faz de todas as outras dores o que de fato são: o preço do prazer de ser teu.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Debbie Seravat disse...

Hum... Gostei!
Em um de meus poemas, escrevi: estar doente é a minha cura.
O que comungamos é essa dor enraizada não sei onde, incansável, anestesiada, de quando em vez.
http://rasgandoabismo.blogspot.com/2011_02_01_archive.html

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