quinta-feira, 21 de outubro de 2010

(2010/523) Um deus espoliado


1. Jack Miles escreveu uma obra de literatura muito interessante - Deus, uma biografia. Ele bem ressaltou o caráter simplesmente literário de seu livro, que consiste em tomar o cânon hebraico, e traçar a história literária de seu personagem principal, Yahweh, tratando-o nos termos gerais em que o deus é descrito em cada um dos livros, conforme a sua ordem seqüencial naquela biblioteca. O livro é altamente recomendável.

2. Nesse mesmo recorte, eu poderia considerar que a história desse deus é a história de uma espoliação de proporções épicas. Enumeremos cada uma das espoliações que Yahweh sofreu.

3. Primeiro, espoliam-no de sua residência. Jz 5 e Ha 3 sabiam que a residência original de Yahweh era o monte Seir, em Edom. Constrangedor que Yahweh residisse em território edomita, mas, fazer o quê?, é informação da própria tradição bíblica. Em algum momento, espoliaram-no de sua residência, e o levaram cativo para Jerusalém. Mais tarde, até isso lhe será espoliado, com justificativas de onipresença...

4. Espoliaram-no de sua consorte. Yahweh fora casado por longos séculos com Asherah, com quem parece ter vivido uma relação amistosa. Em algum momento do final do século VI, Yahweh viu-se obrigado a ser separado de sua amada. Mais tarde, vão arrumar-lhe filho e mãe, mas, mulher, isto é, mulher a quem ame de paixão, nunca mais.

5. Foi espoliado de seu nome. Diz-se, por "respeito". Crês que foi "por respeito"? Eu, não. Tratou-se, antes de mais nada, de interditar a sua evocação ao povo, de modo que, concretamente, essa espoliação é tanto a espoliação do nome de Yahweh quanto do socorro imediato do povo, que, sem acesso ao nome de Yahweh, para invocar, terá de, doravante, servir-se dos (in)utilíssimos sacerdotes.

6. Espoliaram-no de sua imagem. Não se sabe mais nem como era a cara de Yahweh. Aqui, é verdade, tocamos num tema controvertido, porque muita gente boa há de contra-argumentar que Yahweh nunca fora representado. Eu duvido. Só quem não tem a mínima idéia da cultura concreta e representativa dos semitas e dos israelitas, e, por que não?, dos judaítas, poderia afirmar que Yahweh não tinha representação. Duvido. Seja como for, não tem mais. Espoliaram-no de cara e corpo. Meu amigo Haroldo acabou de publicar um livro sobre essa característica sublime da divindade - Inefável e sem Forma...

7. Espoliaram-no do sexo. O que é de todo lamentável. Bel tem um labrador, e quer castrá-lo, o que é compreensível, já que não lhe será dado o que tanto quererá, se não castrado: uma boa fêmea fértil. O problema com que ela lida, agora, é a idade ideal para o fazer. Quanto a Yahweh, não apenas foi castrado e tornado eunuco, mas ainda o querem fazer... mulher. Sim, é complicado: querem-no alguma coisa andrógina ou hermafrodita, você escolhe, ainda que as duas não sejam exatamente a mesma coisa. Pode-se pensá-lo tendo as duas genitálias ou como aqueles ET de plástico, sem nada entre as pernas, como a considerar que a sexualidade representa uma escala inferior da vida, de modo que, criaturas sublimemente avançadas, a primeira coisa que perdem é... o sexo. Pobre Yahweh. Não sabe mais se é homem, se é homem-mulher, se é não-homem, se é não-homem-mulher... Nem Freud, Deus sabe onde andará por esses dias, dará jeito nos transtornos psicológicos de meu amigo!

8. Não foi bem por essas questões, as questões foram outras, foram propriamente a República e o estabelecimento de uma sociedade que acordava e dormia sem missas necessárias ou genuflexões indispensáveis, o fato é que a sua morte foi declarada em algum momento do final do século XIX, pelo filósofo e deicida Nietzsche. No fundo, apenas um legista - nada mais do que isso, porque um deus que não tem (mais) casa, esposa, nome, imagem, sexo, está, na prática morto. Não? Se lhe arrancam as partes, meu caro, se lhe tiram a casa, o nome, a imagem, quem és tu? Não és um defunto?

9. Bem, não necessariamente. Porque sabemos que não importa exatamente a existência real dele, desde que sua idéia permneça fixa na consciência de quem por meio da idéia dele é controlada, vai pra cá, vai pra lá. Desde que as pessoas continuem a crer numa idéia, ela é real, profundamente real, de modo que, ainda que, de uma certa forma morto, como o disse Nietzsche, ele ainda vive, e bem, como também o disse o filósofo, só que se costuma fazer referência apenas ao seu trabalho técnico de legista, mas não ao seu de psiquiatra social.

10. Quanto a mim, tenho saudades daquele Yahweh concreto, com casa, nome, imagem, esposa, sexo. Talvez um dia eu me dedique a recuperar os pedaços que Yahweh deixou pelo caminho, em sua fatalíssima paixão. E pedirei ajuda a outro amigo, Nehushtan, porque Nehushtam tem asas, e Red Bull é muito caro...



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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