terça-feira, 19 de outubro de 2010

(2010/516) Da violência transmutada


1. Não sei se é possível à espécie humana "livrar-se" de sua violência de fundo. Eventualmente, um dia, conseguirá, quem sabe? Tenho minhas dúvidas. E as tenho, dada uma informação: somos primatas e carnívoros. Já assistiram a vídeos de caça de chipanzés? Façam-no e saberão do que falo. Tudo bem, gorilas são mais dóceis... Mas há, sempre, a noção de autoproteção, e os caninos poderosos desses superprimatas advertem-nos de sua capacidade de autoproteção, se me entendem. Sim, é verdade - mesmo com todos aqueles caninos, não são páreo para nós, supersuperprimatas...

2. A violência, pois, é um elemento constitutivo da vida, porque a vida há de se manter - sim, manter-se. Mas, eis a questão: não sem luta. Mesmo as plantas, é verdade, lutam, desesperadamente. Numa floresta, sem espadas, sem lanças, sem bombas atômicas, trava-se uma silenciosa batalha pela vida, e as plantas são uma das principais infantarias dessa guerra.

3. Plantas, animais, bactérias, tudo quanto tem fôlego, louve ao Senhor, mas, como bem conta Macabeus, com a garganta, louvor, mas, nas mãos, espada! E a cada vez que a espada subir ao ar e descer, vitoriosa, sobre o crânio do adversário, meu irmão, afinal, mas, lamento dizê-lo, agora, aqui, meu adversário, irmão de vida, irmão de morte, que minha garganta louve ao Senhor, que nos fez assim, mãos de espada, bocas de canções, e assim tem sido nossa caminhada... até aqui, ao menos.

4. A religião soube trazer para dentro de si essa pulsão biológica natural, a selvageria de comer e matar, de correr para não morrer, o sangue, a carne, as vísceras, o cheiro da morte rondando a porta da caverna, da oca, do castelo, da casa da gente. Se não feras da selva, são exércitos estrangeiros, e, se não são de homens, são de diabos, demônios, encostos, sempre haverá perigos rondando nossa consciência - eventualmente, nossos corpos.

5. A pena, igualmente, soube trazer para dentro de si essa latência de força violenta. No meu caso, por exemplo, posso assegurar que escrevo como que em batalha. Não necessariamente contra esse ou aquele, algumas vezes, sim, contra esse ou aquele, mas, de modo geral, contra tudo e todos, e contra ninguém, apenas a catarse dessa energia violenta que se acumula, e que se extravasa, às vezes, em guerra, às vezes, em sexo (sim, o centro cerebral de controle do sexo e da violência, do controle e da geração do impulso de violência e do impulso sexual, é o mesmo - o paleoencéfalo, ou, de acordo com uma classificação mais antiga, em vias de recuperação, o cérebro reptiliano), às vezes, os jogos, às vezes, a pena.

6. Escrever é estar à frente, no front, diante de um exército. As palavras e as idéias são flechas: elas cobrem o ar, silvando, como nuvem mortal, como naquela cena de 300. Há um mito por trás das palavras, a transmutação do cenário ecológico da vida para um cenário mitológico de batalha de idéias. Para lá, para a noosfera, não nos transportamos, apenas, na forma de deuses e deusas, como disse-o perfeitamente bem Feuerbach, mas transportamos igualmente as nossas pulsões de vida e de morte, de volência e de paz, de amor e de ódio - o que, em última análise, Feuerbach igualmente o disse, e o que, agora, repete-se, muito mais sofisticadamente, é verdade, em Morin). Se não são os deuses que encenarão nossas próprias pulsões, serão nossas palavras transformadas em outros seres de espírito, menos antropomórficos na forma, mas, ah, quem dera!, absolutamente humanas em sua predestinação viva.

7. Precisamos aprender sobre isso. Urge que o façamos. Precisamos rasgar-nos por dentro, e ver como somos, realmente, sem disfarces - mas não quando mortos, sobre a lage fria do morgue, mas enquanto vivos, numa vivissecção heurística e agonística inadiável. Cadáveres num morgue não é o que propriamente somos, que somos o que somos enquanto estamos vivos - depois, é carne apodrecendo, e mais nada, quanto ao que os vermes têm muito a agradecer aos deuses dos vermes, se os há. Só quando entendermos, estaremos protegidos - disse-o Morin, porque não podemos defender-nos de nós mesmos, a menos que saibamos exatamente com que tipo de fera estamos lidando...







OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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