1. Imagine um texto que comece com uma mulher. Não é um homem, não é um sacerdote, não é um profeta, não é um sábio. Não é Deus, não é um anjo, não é o ruah, o "espírito profético" - tão pouco é um satan. É uma mulher.
2. Agora, imagine que esse texto que começa com uma mulher começa com essa mulher falando... Não, ela não está ouvindo. Não, ela não está cozinhando, lavando, cuidando da casa, como a "boa mulher" de Provérbios. Não está, não. Ela está - falando...
3. Imagine mais. Imagine que a fala que essa mulher diz é a expressão de desejo. É um suspiro de desejo. É, como no caso da corça do Sl 42, a manifestação de uma sede, de uma falta, de uma vontade. Ela, a mulher que fala seu desejo, está ardendo... de desejo. Quer beber. Quer matar a sede que a devora. Desde dentro dela, o desejo grita por satisfação: eu quero...
4. Finalmente, imagine que o desejo que atormenta essa muler que fala de seu desejo é desejo "dos beijos da boca dele". "Que ele me beije dos beijos da boca dele", ela suspira, dizendo. É como águas de grande represa, represadas a não mais serem contidas, vazando por cima da barreira colossal de concreto. Sim, ela não pode mais conter-se: quer seus beijos, beijos que são seus, por direito, por posse daquela boca, boca dele, beijos da boca dele...
5. O quê? Onde está esse texto? Ué, na Bíblia...! Juro. Está em Cantares, ou Cântico dos Cânticos, capítulo um, verso dois. Ct 1,2 é um verso que, em si só, resume todo o livro, que abre. Para além da sofisticação literária, ideológica e político-social que perpassa, por inteiro, a composição, o verso de abertura de Cantares resume a questão central do livro - o desejo de mulher, daquela mulher, que, contudo, serve para refletir sobre o desejo de toda mulher.
6. Não há uma única parte do livro, uma sequer, em que o tema do desejo de mulher não esteja presente. Ele, o desejo de mulher, é a alma do livro. E, a essa altura já está claro, trata-se de desejo sensual, especificamente falando. Ora, beijo de boca é como a locomotiva demum longo trem, cujos vagões atravessam todo o corpo, apitando de sentidos - boca, nariz, olhos, ouvidos, mãos... O desejo que a boca, a dela, manifesta pela boca, a dele, é o desejo que o corpo dela manifesta pelo corpo dele.
7. Mulher. Desejo. Boca. Corpo. Vida. É revelador que, a despeito de um texto assim, de uma mulher assim, a vida e a história de mulheres nesses mundos ocidentais - mas também nos orientais - tenha sido de não-boca, de não-desejo, de não-corpo, uma sub-vida, uma sub-existência, é controle, é força, é abuso, é violência, é silenciamento, é subjugação. Não bastou que o "livro texto" do Ocidente fizesse cosntar a voz da mulher, o desejo da mulher, o corpo da mulher, porque os homens do ocidente não ouvem, não vêem, não sentem. Não fora o fato de elas terem, elas mesmas, arrancado de nós, homens ocidentais, seu direito, sua voz, seu corpo, nem sequer votar votariam.
8. O que me leva a concluir que não adianta a Bíblia fazer constar valores - os direitos que esses valores denunciam só serão garantidos quando e se obtidos à força das revoluções, sejam elas do tipo que forem...
8. O que me leva a concluir que não adianta a Bíblia fazer constar valores - os direitos que esses valores denunciam só serão garantidos quando e se obtidos à força das revoluções, sejam elas do tipo que forem...
Um Beijo
Olavo Bilac
Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!
Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.
Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?
Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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