quinta-feira, 4 de junho de 2009

(2009/322) Ar puro, por favor!


1. Desde o século XIX para cá, e isso por conta do fato de a sociedade intelectual - iluminista, que seja - ocidental descobriu-se abandonada dos fundamentos teológicos que a nortearam por séculos, essa mesma sociedade viu-se obrigada a repensar seus fundamentos sociais, políticos, éticos. Noutra palavra, reinventar um jeito de pensar o mundo, a humanidade e a humanidade no mundo, seja essa relação entre a humanidade e o mundo tratada em sentido empírico - homem versus natureza -, seja em sentido antropológico-social, político, - homem versus homem. O "transcendente", aí, migra para o campo do simbólico-lingüístico, reservando-se a sua experiência para o campo da mística e do privado.

2. Numa espécie de seqüência, Kant, Schleiermacher, Schopenhauer, Dilthey, Heidegger, Peirce - estabeleceram, digamos, a primeira fase dessa "invenção": isso no sentido não de inventar um mundo, mas de inventar um novo modo de o conceber. Em última análise, significaria, deveria ter significado, descortinar como se explicaria o fato de o homem, sem fundamentos teológicos, posto que tinham acabado de se revelar hipóstases culturais, lograr perpetuar tradição e conhecimento.

3. Essa primeira fase do processo - que muito me agrada - culmina com a tese heideggeriana do Dasein - o "ser-aí" -, uma radical concepção do "ser", que, tendo nascido Absoluto, Eterno, Imutável, Imóvel, em Parmênides, e, tendo sido associado, então, à concepção de "Deus", na cultura cristã-romana, serviu de base filosófica para o pensamento político de todo o Ocidente - por longos dois mil anos. É verdade que, lá atrás, o contra-ponto já fora formulado: Heráclito já pensara a mudança. No entanto, a força teológico-política de um cristianismo helenizado/romanizado/politizado falou muito mais alto. Venceu o Ser.

4. Começado a ser severamente confrontado no século XIX - Nietzsche já começara a tarefa -, é com o primeiro Heidegger que o Ser é esfacelado, transformando-se num conceito histórico: o "ser-que-aí-está", o "ser-que-vai-sendo-à-medida-que-vai-sendo", "ser-abertura", "ser-aleatório" - "ser-aí"/Dasein.

5. Nesse momento, o Homo sapiens é lançado dentro de um "vazio", se pensado desde uma posição extra-humana, e deixado radical e absolutamente só. O peso é tremendo. E tanto, que imediatamente se inicia o processo de recompor o quadro: o Dasein, o próprio Heidegger vai introduzi-lo no conceito próximo-platônico de Linguagem, bastante hegeliano, no sentido em que é a Linguagem que opera no homem, e o homem corre o risco de dissolver-se em epifenômeno. Kant um, Kant dois, Heidegger um, Heidegger dois - as pessoas amedrontam-se de olhar o vazio...

6. O ápice do processo - para manter-me apenas na esteira da "Hermenêutica" européia (a rigor, germânica!), é Gadamer, que associa Linguagem e Tradição e, juízo meu, transforma a Tradição numa espécie de "clausura" inescapável.

7. O que não é nem de longe verdadeiro.

8. Prefiro o retorno - no meu caso, nunca saí de lá - à primeira fase heideggeriana, e pensar o homem como projeto em projeto. Não há "fôrma". Não há um Ser determinante-determinativo, mas a existência se expressa no gerúndio, sua essência é afeita ao tempo estranho do gerúndio - sendo.

9. Demoramos dois mil anos para nos livrarmos de uma clausura, de uma masmorra, de um calabouço, das algemas de uma prisão. Por cinqüenta anos, olhamos pela janela... E fecham-na na cara da gente.

10. Há algo de muito estranho nessa tendência germânico-européia em "marcar" a tradição, em estabelecer um "território", em afiançar, melhor, em pedir, atenção senhores, que acreditemos que a Tradição é Senhora... Bem, que uma existência inserida inexoravelmente numa tradição - não importa qual - é o fardo e o karma humano, sim, sem dúvida. Não há existência nua possível para o homem, corpo nu em rocha nua. Não - apenas uma existência hermenêutica, logo, histórico-traditiva. Contudo...

11. Isso - a inexorabilidade da existência cultural humana - não significa, absolutamente, em nenhum sentido - não, "naturalmente" -, sob nenhuma hipótese - não, "democraticamente" - na inserção definitiva de uma consciência nessa cultura aqui e agora, sem a absoluta possibilidade de ela ser, essa cultura, especificamente, ad hoc, substituída - transformada. Cultura não é um conceito-masmorra, é um modus vivendi.

12. Se me disserem que Gadamer disse o óbvio - o homem é um ser de cultura e tradição -, ótimo. Concordo. Se me disserem que o homem está alienado em sua própria cultura, a única coisa que ele pode ver é o que ele já é e sabe, que a única coisa que ele pode pensar é sua própria cultura, menearei a cabeça, como nas cenas-chave de filmes "cult", rirei, sarcasticamente, e pedirem para mudarem o script. Isso, meus amigos, é cristianismo mitigado, mas ainda fazendo das suas...

13. Não é curioso que os mais engajados em processos "transformadores", no campo teológico, sejam, confessadamente, gadamerianos? Ora, mas de que tipo de "mudança" e "transformação" estamos falando mesmo - aí? Gadamer e Marx... Que coisa, não?


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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