segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

(2008/80) Do planeta e dos mundos


1. O planeta é um só - Terra. Mundos, são muitos. Não chegarei a considerar, conquanto seja correto, o mundo de cada um, o solipsismo hermenêutico de cada mônada humana. Quero, aqui, falar das noosferas intermediárias entre este e o mundo, a "cultura" geral da "humanidade".

2. Convencionou-se tratar a História por meio do conceito de "eras" - Pré-História, Idade(s) Antiga(s), Idade(s) Média(s), Idade Moderna, Idade Contemporânea. Fala-se, hoje, em pós-modernidade.

3. Tomadas assim, nos livros, parece que o "mundo da humanidade" caminha, todo ele, assim, cada vez dando um mesmo passo dentro do mesmo mundo, dentro da mesma era. Mas não é verdade. Há, ainda, povos, tribos, pessoas, que vivem, na África, na América, na Oceania, na Ásia (talvez não na Europa, eventualmente), como se o planeta ainda estivesse em sua idade mais primitiva: povos das árvores, povos incomunicáveis, gente para quem o tempo é um continuum, gente para quem, para o bem e para o mal, a distinção entre Homo sapiens e o conceito de "animal" ainda é bastante sutil (o conceito de "coroa da criação" não emergeria das conciências desses povos, certamente...).

4. Há nações inteiras que ainda vivem como que na Idade Média - talvez possa ser classificada aí a maior parte da população mundial, consideradas questões tais como condições de vida, de alimentação, de moradia, sanitárias, de saúde, de tecnologia, de "cultura". Groso modo, as grandes religiões, não importa onde, estão, na prática, aí, nesse mundo.

5. Algumas poucas nações, no seu todo, entraram na modernidade, e, dentro delas, algumas porções, "cultas", discutem a pós-modernidade. Enquanto, aí, há bolsões medievais, naquelas nações que ainda se encontram como que na Idade Média, pode-se, eventualmente, observar bolsões "modernos". Nada, em nenhum lugar, é homogêneo. Ninguém, em nenhum lugar, está cercado, o tempo todo, de iguais.

6. Essa situação faz com que, dentro dessas populações heterogêneas, grupos aqui e ali permitam-se viver "descolados" das condições culturais mais amplas. Tais grupos vivem em mundos diferentes, em momentos diferentes do dia, da semana. Eventualmente, estão na modernidade. Agora, já voltam para a Idade Média. Quero dizer com isso que, a cada momento, não apenas deparam-se com condições sociais e de infra-estrutura absolutamente dissociadas umas das outras, mas, inclusive, e o que mais diretamente me interessa aqui, condições noológicas e epistemológicas absolutamente incomunicáveis.

7. Na prática, é cada grupo - a rigor, cada pessoa do grupo - que negocia as condições eco-noológicas de sua vida: pressupostos, cosmovisão, ética, conceitos, valores, bases. Quando necessário, negociam-se tais elementos constitutivos da cultura do grupo, como condição de sua manutenção na ecosfera maior da sociedade. Em termos cosmogônicos, a "criação" é o grupo - fora dele, o nada, o caos, o estranho... Eventualmente, deve-se caminhar através dele. A sabedoria, contudo, está no e pertence ao grupo. O resto é maya.

8. O que eu me pergunto é: qual é o mundo em que eu, profesor universitário, teólogo formado, biblista de vocação (quem dera, profissão), vivo? Que valores, de fato, assimilei? Que epistemologia, efetivamente, me anima? Que fundamentos eco-noológicos me sustentam? O que, dentro do espectro complexo da cultura, me diz respeito? Quem sou eu, quando escreve na ouviroevento, no Peroratio, quando escreve e publico artigos? Sou sempre "eu", inteiro, nu, eu diante de mim mesmo? Tenho consciência de quem me tornei? Enxergo-me tal qual realmente sou? Assumo-me? Reconheço-me?

9. Para alguém que assumiu uma condição de vida autônoma, (hiper)crítica, teleologicamente epistemológica, não há como simplesmente repetir gestos, movimentos, ritos, palavras, credos. Nada se me depara que não receba, incontimenti, à testa, a fulminante questão: com que base me dizes o que dizes? Reveladas, as bases mostram-se próprias de outros mundos, de outras eras, de outras crenças, antigas, algumas, medievais, outras, "pós-modernas" (ou seja, alegadamente sem base!, como se tal coisa fosse "evolutiva"...), outras. Por mais que eu queira descansar, diante delas não posso. Não, eu.

10. Meu mundo é um mundo onde não há descanso, e, contudo, ele é puro descanso. Não há descanso, porque tudo e todos que dele se aproximam sob o regime pragmático político (todo diálogo é político, seja que comunique uma experiência, uma pesquisa, uma vontade) devem, incessantemente, ser alvo de crítica e análise: eu não sou o critério, mas quem o decide, acima de tudo, sou eu - e não há outro, nem sursis. Mas é, ao mesmo tempo, puro descanso, porque, a rigor, tudo quanto é metafísica, ontologia e teologia se aproxima com mitos de desgraça/salvação, pecado/perdão, morte/vida, e, aqui, onde me encontro, não há que se afirmar a salvação, ah, que pena, mas, evangelho!, também não a perdição, de modo que posso, se desejar, gastar minha vida a contemplar o nada, porque, no final, não há como saber.

11. Esse é o diferencial dessa era - terrível era!: fosse ontem, podia eu, arrepidado, agarrar-me a mitologias criadas por homens e mulheres de ontem, para sentir-me seguro (lá vou eu de novo, cutucar a onça: metáforas, em teologia, como plataforma teológica "pós-moderna", são excelentes meios políticos para mentalidades pós-modernas manterem no redil um rebanho medieval... justificadmanete!). Mas hoje é hoje, o terrível dia de hoje, onde não há sombra, se o Sol queima, inclemente, nem abrigo, se a luz cega, dolorosa. Só se pode, nesse hoje, nesse lugar, dar a cara ao vento, e saber que até esse vento, até esse dar a cara ao vento, até isso, é mitologia...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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