terça-feira, 23 de dezembro de 2008

(2008/117) Somos indesculpáveis, porque (ir)responsáveis


1. A "Teologia" antiga - falo como se ela houvesse, já, se ido, e não se foi... -, a "Teologia" medieval - a rigor, "platônica", paulino-agostiniana, luterano-barthiana, sobretudo "nicênica", que é "conteúdo", que é "doutrina", que é "dogma", que se cuidava "saber" (não, não é saber), o teólogo que a abraçava - e, à época, podia-se! - encontrava-se, enquanto teólogo, numa situação muito confortável. O que ele, simples teólogo, mortal, "medium", podia fazer? Ela, a "Teologia", ela era o que era - aquele monolito de Arthur C. Clark e Stanley Kubrick, diante do qual macacos só podem seguir seu destino divinamente traçado. Diante dela, da Divina Teologia - na prática, malgrado as difrenciações técnicas de sala de aula e notas de rodapé de alfarrábios dogmáticos -, ela e a Revelação se imiscuem, e não como água e óleo, mas como o mito, na Cidade Bela. Esse teólogo, essa teóloga, tomados por ela, a "Teologia" de Platão e da Cidade Bela, só lhes cabia deixarem-se tomar pela Iluminação e, com a boca penhorada, falar, falar, falar - sem culpa, sem desculpas...

2. Maldito Kant! Maldito Romantismo! Malditos Schopenhauer!, Feuerbach!, Nietzsche!, certo Heiddeger! Maldito Peirce! Depois deles, tudo - a b s o l u t a m e n t e tudo muda. Revela-se, diante dos nossos olhos, a condição dessa "Teologia", a condição desse "conteúdo", a condição de nós, teólogos, diante dela, diante dele, diante de nós mesmos. Não se pode mais, não para o teólogo profissional, esconder-se em sua (ir)responsabilidade, por trás de um conteúdo "imposto" - quando o teólogo tenta fazê-lo, ouve a própria voz: ora, como assim?, você repete isso porque quer - aliás, por que é mesmo que repete isso?

3. Para o teólogo de "segunda onda" (tudo, até aqui, foi a grande onda platônica) - o teólogo pós-metafísico, as colossais e gótico-barrocas portas do céu foram definitivamente fechadas - se ele quer enxergar. É verdade que, alguns, astutíssimos, perspicazes até a sutileza, percebendo a situação irrevogável, cuidaram estabelecr uma estratégia de, dane-se a porta do céu, fechada, o que nos vale é o manejo das palavras velhas, porque, a rigor, não era a porta, afinal, eram elas, as palavras - o tempo todo. Ora, ao mesmo tempo em que Feuerbach denuncia a "fraude", indica, à astúcia, o "caminho" - é como quando você descobre que determinada planta pode matar: uns, trataram de evitá-la, enquanto outros, justamente por isso, tratarão de cultivá-la - o conhecimento tem sempre duas estradas possíveis. Eram palavras?, apenas?, pois que sejam palavras... Esquecem-se, mero "detalhe", de avisar aos jogadores que mudaram as regras...

4. Mas deixemos os metafóricos de lado - são políticos, primeiro, e os teólogos em que se constituem estão a serviço contratual de uma política engajada, de modo que não se pode levar a sério nem sua teologia nem seu caráter de teólogos, porque constituem "macacões" de trabalho. A questão se reduz à dogmática confessada - posição respeitável, confesso -, e a posição pós-metafísica, romântica, que assumo. Se o teólogo não passou, de verdade, ele é honesto nisso, quando confessa que não passou por lá, pelo século XIX, não é que o que continue a fazer não seja (epistemológica e eticamente) equivocado em si mesmo - o é -, mas, à luz do direito vigente, é "culpa", não "dolo" (aos metafóricos da moda, cabe o "dolo"). Aos que passaram pelo XIX, resulta indesculpável qualquer laivo de "iluminação", de "revelação", de "Tradição" (nos termos do jogo atual, eu arriscaria dizer - de homilética!) - salvo mediante uma postura política cujo discurso seja coerente com a prática: controle social por meio programático do mito aplicado a uma "comunidade" que tem em comum o comum de ser alienada da sua condição de "gado" - sim, "ovelhas" constituem gado "miúdo" (mas "gado").

5. O modo como coloco a questão até aqui esclarece bastante bem minha posição - não se trata de uma "liberdade" que me concedo: trata-se de um imperativo ético que me imponho. Por quê? Porque passei pelo XIX. Entrei nele vestido de gótico e barroco, e saí nu. Não é que eu possa, hoje, escolher entre um dogma fundamentalista e revelado, mais ou menos dissimulado em catequese dogmática ou "missões transculturais/inculturação da fé", de um lado, e, eventualmente, de forma eticamente mais degradada, uma metáfora retórica - não posso me oferecer essas saídas, porque ter passado pelo século XIX, e enfrentá-lo, acredite-se, com crítica (equivoca-se quem cuida que não envidei toda crítica possível ao XIX, mas, é óbvio, tive todas as marretas que usei quebradas pela dureza inexorável daquele fundamento), interditou-me o auto-engano. O que me resta, enquanto teólogo, e, naturalmente, não "teólogo" a serviço de qualquer partido, mas teólogo que pensa a teologia que ele, teólogo, pensa, que a critica, que a disseca, sim, senhor (tristíssimo o despeito que se tem a uma teologia dissecativa, quando, na qualidade de homem ocidental moderno e republica, se é beneficiário direto dela, seja por meio dos avanços das técnicas de historiografia, seja por meio das técnicas medicinais - a exegese e a medicina modernas nasceram praticamente juntas, tiveram, praticamnte, os mesmos fundadores - cf. Jean Astruc...), nada, absolutamente nada fica intacto diante dela, o que me resta é repensar-me e à minha teologia à luz dessa passagem.

6. Por isso, não há desculpa para nós - não para nós. A quem muito se dá, disse-se, muito se cobrará. E, a nós, teólogos, e refiro-me a nós, teólogos profissionais, ah, a nós deu-se muito. Quem viu o que nós vimos - e vimos - e arranca os olhos: indesculpável! Quem ouviu o que nós ouvimos - e ouvimos!, e tapa os ouvidos: indesculpável! Fechar os olhos e tapar os ouvidos por não dar crédito ao que vê e ao que ouve, sendo esse um teólogo profissional, eis um grave pecado. E fechar os olhos e tapar os ouvidos não é, todavia, nosso maior pecado - o maior pecado é a razão, a maldiuta razão pela qual fechamos os olhos, tapamos os ouvidos, a despeito do que vimos, a despeito do que ouvimos.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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