quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

(2020/005) "Há perigo na esquina"

1. A Revista da Arquidiocese de Vitória/ES, Vitória é seu nome, pediu-me que escrevesse texto breve que tratasse do Artigo 5º, inciso VI da Constituição. O artigo foi publicado no último número da revista, na p. 27. O artigo pode ser lido abaixo.


“Há perigo na esquina”

Osvaldo Luiz Ribeiro

“Artigo 5° (...) VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (Constituição Federal do Brasil).

O texto em epígrafe é a última grande etapa legislativa que se inaugurou formalmente com o Decreto 119-A. Cem anos depois, a Constituição Cidadã recepcionou e aprofundou a expressão da norma. Acho lindo isso.

Acho impensável que alguém pretenda determinar a crença de terceiros. Penso que apenas a sede de poder e o desejo pelo controle dos corpos e das mentes das pessoas, além de problemas psíquicos profundos, levam pessoas a sentirem-se no direito de arbitrarem a confissão dos cidadãos. Na verdade, considero doentio, perverso e intolerável que alguém pretenda determinar como as pessoas devem se relacionar. Incluo nesse tópico todas as expressões humanas, dentre aos quais considero conveniente ressaltar a religião, a política e a sexualidade.

Quando o Estado assumiu a responsabilidade de conceder/reconhecer direitos de livre expressão de fé aos cidadãos e às cidadãs, deu o primeiro passo para o que seria uma das marcas do século XX: a emancipação social dos costumes teologicamente sustentados e político-patriarcalmente herdados. Mesmo com a decisão política do Estado de reconhecer/conceder a liberdade de expressão religiosa, somente com muita disputa política se foi muito lentamente transformando em prática o que constava da letra da lei. Para as religiões de matriz cristã não católica, a batalha foi mais fácil desde o início, conquanto tenha sido capitaneada naquela ocasião por maçons aliados aos valores da República. Para as religiões do povo preto, todavia, é legítimo considerar que a luta está longe de ser concluída. Depois da política de branqueamento que o país conheceu no início do século XX, no final daquele século o Rio de Janeiro foi palco de outro branqueamento, resultado da aliança entre evangélicos e o tráfico, do que decorreu a expulsão de terreiros tradicionais de religiões de matriz africana dos morros cariocas. Não vos constrange isso?

Desde o Decreto 119-A, o Brasil se transformou. A despeito das tentativas institucionais de branqueá-lo, revelou-se preto e mestiço. Religiões dessa cor foram marginalizadas e os cristianismos continuaram – a despeito de sua luta fratricida interna – a dominar o campo religioso. Recentemente, todavia, a matriz cristã apresenta transformações, com cada vez maior representação do contingente evangélico de tradição fundamentalista. No campo católico, a Teologia da Libertação viu seus espaços serem tomados pelos movimentos carismáticos. No conjunto, com o sugestivo título “Os demônios descem do norte”, já se sugeriu ver aí movimentos políticos orquestrados.

A matriz cristã que se publiciza na política e na mídia expressa palavras de ordem que não são constitucionais, e assume tal condição transformando a divindade em uma espécie de garoto propaganda da intolerância e do totalitarismo teocrático. Acho isso muito feio.

Há perigo na esquina. De novo.





OSVALDO LUIZ RIBEIRO



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