1. Em Deus e os Homens, Voltaire, que, segundo Eduardo Guerreiro Losso, professor de Teoria da Literatura na UFRRJ, meu amigo e, agora, doutor Jimmy, chuta e xinga como um inverso-polar do time de seus "escolhidos" filósofos-teólogos, mas de quem eu gosto muito, quero dizer, tanto de Voltaire, o chutado, quanto de Jimmy, o chutador, Voltaire dizia, então, que a Europa andava a tomar a China como um país "ateu"...
2. Ora, talvez nunca tenha havido uma nação, uma tribo, um povo, ateu. O talvez, aí, não está a pôr em dúvida a questão - está apenas a dizer que nosso conhecimento histórico começa muito tarde: não sabemos se no período que ainda não conseguimos cobrir tenha havido uma nação ateia. Todos os povos, culturas e nações que conhecemos, nenhum, nenhuma, foi. Logo, para o período histórico documentado, é válido dizer: nunca houve povo ateu.
3. Mas o europeu "culto" - isto é, o europeu cristão - daquele século (XVIII), julgou tratar-se de uma nação ateia. Voltaire desanca a tese. Óbvio.
4. É que o confucionismo, religião de Estado, não é uma religião parecida com a cristã - muito pelo contrário. Ainda que o Cristianismo seja, à época de Voltaire, uma religião de Estado, seja católica, seja protestante, há um fosso enorme entre as duas religiões.
5. Se o teólogo cristão mede o conceito de religião por si mesmo, há de verificar que falta ao Conficionismo diversos elementos da religião cristã - e isso explica por que os religiosos da época, então, consideravam que não havia religião na China e, não havendo, não havia fé nem Deus e, não havendo, era ateu aquele Estado e ateu aquele povo...
6. Mas nada mais equivocado.
7. O Confucionismo precisa ser compreendido, em termos de sua auto-imagem, como a sobreposição e identificação entre Estado e "divindade" ou, entre Estado e "transcendência". Um cristão vive em peregrinação - está a caminho do "céu". A terra em que ele vive, a casa em que mora, o Estado sob o qual se protege, é, tudo, provisório, passageiro, sem valor... Para o confucionista, não: o sentido de sua vida é o lugar que lhe cabe no Estado. O Estado é, para todos os fins, a fonte de sentido de sua existência e o destino de sentido de sua vida.
8. Uma religião de ética, na qual o Estado encarna o transcendente. Em certo sentido, não é muito diferente das sociedades antigas, do Oriente Próximo, por exemplo e, até, da religião judaica, se tivermos boa vontade e preservarmos as devidas proporções.
9. No Sl 137, pede-se ao salmista que cante um dos cânticos de Sião. Mas ele não pode. Está em terra estranha. E daí? Yahweh não está ali. Yahweh é Deus de Jerusalém, e a criação é Judá - fora de Judá, o salmista encontra-se no caos, nas águas cosmogônicas - não há culto, ali, não há criação, não há sentido. Ele tem de voltar para casa. O mesmo vale para todas as nações daquela região: Babilônica, Egito, Assíria, Pérsia. A noção só vai se ampliar e esgarçar, até o rompimento, a partir do período imperialista - Pérsia, Grécia, Roma, Cristianismo, quando o fato de os Impérios ampliarem suas fronteiras a abrigarem tantos deuses não-nacionais obrigar a cultura a repensar a cosmovisão teológica.
10. Da mesma forma, a divindade sempre está "encarnada". No Egito, encarnada - literalmente, em Faraó. Na Babilônia, o sentido da encarnação da divindade se dá pelo conceito de imagem - o rei é a imagem do deus, e quem vê o rei, vê o deu. Em Israel, o sentido de encarnação da divindade se dá por meio da noção de ser o rei o filho de Deus.
11. Ora, vê-se que, para todos os fins, a nação e o próprio rei são a expressão da criação e da divindade, e fora da nação, o cidadão encontra-se fora de seu mundo de sentido, fora da existência - afundados nas águas do caos.
12. O Confucionismo leva essa antiga noção às suas mais materiais, culturais e políticas conclusões: o Estado é a expressão divina de sentido da existência. Serve-se aos deuses por meio do serviço ao Estado. Não há algo que você possa fazer além disso que o coloque em sintonia com o sentido de sua vida - é sendo o melhor de si em sua função na sociedade-Estado. Cada qual, em cumprindo suas funções sócio-estatais, encontra, aí, seu serviço aos deuses, o sentido de sua vida, o "sagrado".
13. O mandatário tem o "Mandato dos céus" - o que só já basta para conceber o Confucionismo como uma religião. Se ele, o mandatário, não possui as qualidades desse "mandato", seu governo torna-se difícil. O sentido da vida de cada súdito é compreendido como uma engrenagem em torno desse centro - o mandatário, de modo que cada ação "civil" é, em si, um rito "religioso".
14. A tradição judaico-cristã, e isso se viu na tese weberiana da relação entre capitalismo e protestantismo, conhece a recomendação a que se faça tudo como ao Senhor, mas o grau de mitologia religiosa é tal que, na medida em que se passa a agir civilmente, a dar sentido à cultura, tende-se à secularização, que, na ótica doutrinária e mitológica cristã - e de muitos filósofos ainda presos à lógica teológico-mitológico-metafísica da fé, traduz-se em perda de sacralidade, de sentido, em niilismo...
15. No Confucionismo, a secularização dos valores, da cultura, está pressuposta desde o início. O sagrado - o Estado como manifestação da divindade - traduz-se em profanização do sujeito descartado do "jogo": a sacralização não se mede pelo fato de assistir TV ou ir ao teatro, mas se essas operações se encontram em sintonia com o bem-estar previsto pelo Estado e o serviço obrigatório do "fiel".
16. Para um cristão, o mundo moderno é profano, é secular, é triste e desencantado: porque o cristão é um homem mitológico e medieval. Um confucionista permanecerá confucionista em uma colônia ultra-moderna em Marte - porque a colônia será expressão do Estado, e a função que ele exerce ali, seu culto e o sentido de sua existência.
17. Duas observações finais: a) entende-se que esse povo se torne pacato e "bovino", se posso usar essa expressão em sentido não pejorativo - e explica como os Estado Unidos puderam usar esses semi-escravos para construir as ferrovias a que hoje nos referimos como exemplo do gênio daquele povo cristão: esquecendo que tudo quanto ele fez, fez à custa de escravização e semi-escravização, seja de pretos, seja de chineses, seja de povos coloniais...
18. B) Trata-se de um sistema religioso que, naturalmente, concede ao "coletivo" uma considerável superioridade ontológica em relação ao sujeito, o que tem sido usado como indicação do caráter ditatorial do sistema.
19. Seja como for, não é aqui o lugar que vou discutir a questão. Apenas registrar que os homens precisam inventar formas de viver. Não há uma forma cultural dada - tudo é invenção, tudo é fantasia de sentido, mas fantasia necessária para funcionar como eixo de sentido para cada coisa que fazemos. O cristão quer ir pro céu. O confucionista vive nele. Não importa se o que pensam do "céu" seja tão diferente - para cada um, é seu céu e destino...
20. No fundo, todo confucionista é um monge - mas o monastério é o Estado inteiro, a criação como um todo. Não fosse tão mitológico, acho que o protestante típico, europeu, de países com Estado protestante, seria um tipo cristão de confucionista...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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