sábado, 16 de junho de 2012

(2012/489) Freud e as brincadeiras ditas como brincadeira que não são tão brincadeiras assim

1. Desde o final do século XIX, com Freud, conhecemos um mecanismo que funciona assim - você quer dizer algo sério e, eventualmente, "ofensivo". Aí, diz rindo e sorrindo, com ares de bonachão, porque você faz de conta que é uma brincadeira e, fazendo de conta que é uma brincadeira, você se desencarrega daquela pressão da alma de dizer, na cara do sujeito, as verdades que você acha que ele deve ouvir.

2. A sala de aula está cheia desses joguinhos freudianos. Às vezes, não se é tão sutil.

3. Ao fim da aula da pós, hoje, um aluno disse para um outro aluno, me olhando e num tom suficientemente alto para eu ouvir, que "ele é um tremendo manipulador" - disse rindo...

4. Como disse para eu ouvir, e eu ouvi, retruquei. Como assim, manipulador? Durante a aula eu disse umas duas vezes que tudo o que eu estava dizendo podia estar errado! E ele, então, entre Freud e Foucault, alinhavou: mas essa é uma técnica de manipulação!

5. Curioso. Todos os professores são, então, manipuladores. Todos os maridos e suas mulheres. O papa. Até a Bíblia, tudo é manipulação. Bem, em sentido amplo, amplíssimo, sim. Em sentido técnico, restrito, recuso o comentário e o tomo como uma espécie de defesa do aluno para fugir da obrigação que a sua própria alma criou de me levar a sério. Se ele pudesse não me levar a sério, dava de ombros. Mas não pode deixar de me levar a sério. Por outro lado, vai-se lá saber!, não pode ouvir o que eu digo, de modo que ele tem de defender-se. E a defesa é simples: ah, ele é um manipulador!

6. Mas não sou. É falsa a classificação. Em termos de poder, claro, exerço-o com toda força em sala de aula. Mas nenhum aluno do planeta me deixará mentir - sempre lembro Morin: todo conhecimento pode estar errado e eu posso estar errado, vocês devem me ouvir, parar, pensar e criticar. Digo isso há duas décadas!

7. Não ameaço. Não exijo que pensem como eu penso. Não obrigo ninguém a concordar comigo. Não encomendo a alma de ninguém a Satanás. Apenas digo, prostaticamente, passionalmente, os conteúdos que tenho de dizer. E digo nu e com a alma ao avesso. Não cumpro tabela. Vivo intensamente aqueles momentos, dos quais, alguém acreditará?, quero me livrar durante cada segundo que eles duram. Não tenho qualquer paixão para a sala de aula enquanto estou fora dela. Não vivo para a sala de aula. Quando estou lá, exerço meu poder de modo consciente, e o diminuo ao máximo, autorizando a crítica de todos, dizendo que devo ser criticado, que os alunos não podem sair repetindo o que eu digo, nem o que eu digo nem o que qualquer professor diz.

8. Manipulação? Menos, companheiro.

9. Depois que saio da aula, vocês acham que fico preocupado para saber se o sujeito virou um ser humano à medida do que eu esperaria? Na maior parte das vezes até esqueço o nome. Não tenho nenhuma ligação umbilical com alunos. Mas, quando estou na sala de aula, na condição de professor, ninguém me verá lendo cartilhas - me verá virando-me do avesso e virando cada aluno ao avesso, programaticamente, com paixão, com sentimento, com o máximo de honestidade - conquanto carregado de possíveis erros conceituais. Mas quem pode alegar não estar carregado deles?

10. Assim, interpreto o comentário de saída do aluno, ao apagar das luzes, como defesa. E eu entendo a defesa. Alguns alunos são pastores e, depois de me ouvir, pouca coisa se aproveita para o modelo padrão que aí está: moo a Bíblia, moo a tradição, moo a fé, com argumentos, com dados, com retórica, e deixo cada aluno retrucar, falar, expor-se. A maioria não faz, alguns porque não têm estrutura para retrucar - e isso dói, eu sei.

11. Mas uma parte se ressente de que tenha que voltar para o outro lado da porta, para o mundo, e ter de esquecer tudo o que acabou de ouvir, com o que a sua alma, no fundo concorda, porque o jogo da vida, da igreja, da fé, continua, e ele é um escravo do jogo.

12. Maldade minha?

13. Pode ser.

14. Mas, vejam: é só me dizer onde está errado aquilo que eu estou dizendo. Se estiver, retiro cada palavra. Todavia, se não há como dizer que está errado, lamento, cavalheiros, haja piadinhas para soltar no fim da aula, porque o dia seguinte será amargo como fel. Até que o tempo passe - porque passa! -, você esqueça do que ouviu - porque esquece - e a vida continue, aleluia!, amém!



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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