domingo, 3 de julho de 2011

(2011/414) "Processo histórico" - plataforma dinâmica da emergência da consciência de direitos (ou da "segunda natureza"): Hegel, em Losurdo


1. Transcrevo um parágrafo de Losurdo:

Em polêmica com Bentham, que ironizava a ininterrupta violação e alienação dos direitos considerados 'inalienáveis', Constant observa: 'Mas, afirmando que esses direitos são inalienáveis e imprescritíveis, afirma-se simplesmente que não devem ser alienados, não podem ser prescritos, fala-se do que deve ser, não do que é'. Essa afirmação poderia muito bem ser subscrita por Hegel, embora com a advertência de que esse deve ser é não a expressão de uma exigência de consciência privada, de um postulado intimisticamente afirmado pela moralidade do indivíduo singular, mas o resultado objetivo de um processo histórico, indiscutível, que não pode mais ser percorrido ao avesso (Domenico Losurdo, Hegel, Marx e a Tradição Liberal, UNESP, p. 93).

2. Processo histórico! Aí está. Também a "consciência" humana resulta de um "processo histórico". Mas, uma vez desperta a consciência (de si), também se altera o próprio processo histórico, porque, agora, ele será vivido "por dentro". E não é outra a causa de o homem, por meio do processo histórico, ter-se "descoberto" como sujeito de direitos - é a sua consciência, a ideia que ele faz de si, a partir de si e do tratamento que dá e recebe também dos outros homens, o fato de que uns têm tudo, outros, nada, de que uns vivem em Paris (ou Finlândia), enquanto outros vivem em Bangladesh ou no Congo, foram esses fatos históricos, à luz da consciência de si, o fenômeno, o gatilho que disparou a consciência dos próprios homens como sujeitos de direitos: eles creram em seus direitos, eles os reivindicaram!

3. Não, não há "direitos" na Natureza - só "obediência" (e nem disso se trata, de fato). Mas os homens não são mais, em primeiro lugar, "Natureza" - o processo histórico dotou-lhes de uma segunda natureza, que não tem outra fonte que não a assimilação, a interpretação, a vivência desse mesmo processo histórico por meio da consciência. Um homem não pode ser escravo e considerar isso natural - porque ele sabe, ele , ele sente, sabe e vê que quem o escraviza é alguém igual a ele. O homem não é o boi. Se já foi macaco, ou se já teve por avô um símio, não é mais um deles. Conquanto, em certo sentido, ainda tenha dentro de si aquelas mesmas pulsações - pulsões! - simiescas: para o bem e para o mal...
Sim, a natureza é o reino da opressão, do domínio do mais forte, como sustentava o publicismo contra-revolucionário e os teóricos do 'darwinismo social' ante litteram, mas à natureza Hegel contrapõe a 'liberdade do espírito' e a 'igual dignidade e independência' dos homens e dos cidadãos (...). Freiheit, gleiche Würde e Selbständigkeit: parece a reproposição do trinômio oriundo da Revolução Francesa, mas esses direitos (ao lado dos quais começa a surgir um direito completamente novo, que é aquele à vida) configuram-se como inalienáveis, como inseparáveis da 'natureza', do conceito de homem, enquanto resultado de um longo parto histórico, de um longo e atormentado processo histórico que não pode mais ser percorrido às avessas. Ora, pela primeira vez com Hegel a inalienabilidade remete não à natureza, mas à história universal que elaborou e acumulou um irrenunciável patrimônio comum para todos os homens, para o homem enquanto tal (p. 98).


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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