1. É muito curiosa a diferença entre o Adão de Gn 1,1-2,4a e o Adão de Gn 2,4b-3,24. O primeiro, deve dominar sobre a terra, sujeitando-a a si, bem como aos animais. Ele é a "forma" e a "imagem" da própria divindade cosmogônica ("criadora"). O segundo, não. Mas, nesse caso, há um fator complicador.
2. Gn 2.4b-3,24 constrói-se sobre o mito da Idade de Ouro inicial - ou alguma coisa equivalente. Trata-se do mito de que, no "princípio", a Terra "dava" fácil e gentilmente seus frutos. Resquícios, esse mito, da memória dos caçadores-coletores, ancestrais dos criadores-cultivadores? Não vou discutir isso. Mas uma coisa me parece certa - nunca, em tempo algum, a "terra" deu, sem que para isso o homem devesse esforçar-se, suar, arrotear, seus frutos.
3. No mito de Gênesis, o suor do trabalho, os entulhos naturais - cardos, espinhos - da terra, o esforço humano, tudo isso consistiria na "maldição" divina, lançada sobre o Adão agricultor-pecador. Antes dessa maldição, nada disso teria havido, então, nem suor, nem esforço, nem cardos e espinhos... Ora, é óbvio que, desde que o homem tornou-se agricultor - e não há muito tempo que isso ocorreu, todavia - que a terra cobra caro ser "violada". Sim, a terra é dadivosa de seus frutos, mas cobra esforço, suor, trabalho - qualquer um sabe disso. Há uma "romantização" da vida dos agricultores - na prática, sua vida resume-se a trabalho desgastante. As Hillux reservam-se aos donos da terra... não aos que portam as enxadas...
4. Isso posto, parece óbvio que o mito constrói-se sobre a realidade, projetando a sua intencionalidade política a partir de uma "invenção", sem a qual a força política do mito desaparece. Ora, se desde que o homem é homem ele sua, essa maldição de Yahweh soa ridícula... Mas, agora, se antes dela, o homem que cultiva a terra o fazia como quem assiste à TV, comendo pipoca, então essa maldição, de fato, é uma coisa terrível. Logo, o mito quer fazer o trabalhador crer que seu estado - natural! - constitui, na verdade, um estado artificial, causado por seu pecado, sua culpa, e que, se ele, agricultor, não fosse quem fosse - "ele é mau desde a meninice", dirá, mais à frente, o que deve ser considerado parte desse mito -, ele teria uma vida bem melhor. Motal da história: esse Adão é um homem mau, pecador que, por isso, por ser quem é, recebe, merecidamente, a maldição de trabalhar feito um cão no inferno, suando feito burro, lanhando-se de cardos e espinhos, bem-feito...
5. Não é possível - é? - que se trate, primeiro, do "mesmo" Adão, de Gn 1,1-2,4a, segundo, que se trate do mesmo "ambiente" redacional, terceiro, que se trate do mesmo "ciclo narrativo". Um, domina, outro, é dominado. Um, sujeita a si, outro, é sujeitado.
6. Eu direi o que penso disso: o primeiro representa o rei, e o texto foi escrito para a inauguração do Templo de Jerusalém, quando Zorobabel ainda se imaginava herdeiro do trono. Apostaria que esse Adão é Zorobabel. O segundo, não. Zorobabel desaparece de cena - não se sabe nem como nem por que. O texto torna-se imprestável, quero dizer, politicamente inútil... Os sacerdotes herdam o "governo". Metem-se na vida religiosa dos camponeses e entram em conflito aberto com eles. Dominam-nos e, sobretudo, ideologicamente, por meio da fabricação de mitos - e o Adão de Gn 2,4b-3,24 é esse Adão-camponês, amaldiçoado pelo Templo, um homem que deve considerar-se mau e maldito, para, considerando que o "perdão" está disponível no Templo, submeter-se ao Templo.
7. Quando, num simpósio, defendi a hipótese de o Adão de Gn 1,1-2,4a ser uma representação mítica do rei de Jerusalém, o Prof. Edgar Leite, da UERJ, disse que a tese não era boa nem para a Teologia (naturalmente!...), nem para a História (nisso, ficou a dever as razões...), e que se devia apenas ao fato de que eu via ideologia demais nos textos bíblicos... Vai ver é isso. Vai ver meus olhos estão desfocados, e não percebo a coisa "inocente" e "generosa" que são esses textos... Ou, ao contrário, vai ver é que a ideologia de manter esses textos girando a roda da Fortuna é que impede o establishment de ver neles o que, se visto for, os deixa nus em pelo, para vergonha de Deus (que, eventualmente, nada tem a ver com isso...). Quem sabe um dia descubramos quem estava com a razão?...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
3. No mito de Gênesis, o suor do trabalho, os entulhos naturais - cardos, espinhos - da terra, o esforço humano, tudo isso consistiria na "maldição" divina, lançada sobre o Adão agricultor-pecador. Antes dessa maldição, nada disso teria havido, então, nem suor, nem esforço, nem cardos e espinhos... Ora, é óbvio que, desde que o homem tornou-se agricultor - e não há muito tempo que isso ocorreu, todavia - que a terra cobra caro ser "violada". Sim, a terra é dadivosa de seus frutos, mas cobra esforço, suor, trabalho - qualquer um sabe disso. Há uma "romantização" da vida dos agricultores - na prática, sua vida resume-se a trabalho desgastante. As Hillux reservam-se aos donos da terra... não aos que portam as enxadas...
4. Isso posto, parece óbvio que o mito constrói-se sobre a realidade, projetando a sua intencionalidade política a partir de uma "invenção", sem a qual a força política do mito desaparece. Ora, se desde que o homem é homem ele sua, essa maldição de Yahweh soa ridícula... Mas, agora, se antes dela, o homem que cultiva a terra o fazia como quem assiste à TV, comendo pipoca, então essa maldição, de fato, é uma coisa terrível. Logo, o mito quer fazer o trabalhador crer que seu estado - natural! - constitui, na verdade, um estado artificial, causado por seu pecado, sua culpa, e que, se ele, agricultor, não fosse quem fosse - "ele é mau desde a meninice", dirá, mais à frente, o que deve ser considerado parte desse mito -, ele teria uma vida bem melhor. Motal da história: esse Adão é um homem mau, pecador que, por isso, por ser quem é, recebe, merecidamente, a maldição de trabalhar feito um cão no inferno, suando feito burro, lanhando-se de cardos e espinhos, bem-feito...
5. Não é possível - é? - que se trate, primeiro, do "mesmo" Adão, de Gn 1,1-2,4a, segundo, que se trate do mesmo "ambiente" redacional, terceiro, que se trate do mesmo "ciclo narrativo". Um, domina, outro, é dominado. Um, sujeita a si, outro, é sujeitado.
6. Eu direi o que penso disso: o primeiro representa o rei, e o texto foi escrito para a inauguração do Templo de Jerusalém, quando Zorobabel ainda se imaginava herdeiro do trono. Apostaria que esse Adão é Zorobabel. O segundo, não. Zorobabel desaparece de cena - não se sabe nem como nem por que. O texto torna-se imprestável, quero dizer, politicamente inútil... Os sacerdotes herdam o "governo". Metem-se na vida religiosa dos camponeses e entram em conflito aberto com eles. Dominam-nos e, sobretudo, ideologicamente, por meio da fabricação de mitos - e o Adão de Gn 2,4b-3,24 é esse Adão-camponês, amaldiçoado pelo Templo, um homem que deve considerar-se mau e maldito, para, considerando que o "perdão" está disponível no Templo, submeter-se ao Templo.
7. Quando, num simpósio, defendi a hipótese de o Adão de Gn 1,1-2,4a ser uma representação mítica do rei de Jerusalém, o Prof. Edgar Leite, da UERJ, disse que a tese não era boa nem para a Teologia (naturalmente!...), nem para a História (nisso, ficou a dever as razões...), e que se devia apenas ao fato de que eu via ideologia demais nos textos bíblicos... Vai ver é isso. Vai ver meus olhos estão desfocados, e não percebo a coisa "inocente" e "generosa" que são esses textos... Ou, ao contrário, vai ver é que a ideologia de manter esses textos girando a roda da Fortuna é que impede o establishment de ver neles o que, se visto for, os deixa nus em pelo, para vergonha de Deus (que, eventualmente, nada tem a ver com isso...). Quem sabe um dia descubramos quem estava com a razão?...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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