quarta-feira, 24 de junho de 2009

(2009/377) Dos outros-coisas


1. Para o homem, para a mulher, para o ser humano, o Homo sapiens, e isso porque ele é apenas mais um dentre seus pares, as feras, os vertebrados, as bactérias, o pombo, o lírio, o levedo, para o homem, só há ele e as coisas. Tudo quanto não é ele - tudo -, então isso tudo são as coisas. Incluídas nesse tudo estão todas as outras pessoas, que, para o homem, são coisas.

2. As coisas, o não-homem, aparecem ao homem como insumo biológico, insumo antropológico. Todas as coisas, incluídas aí os homens e as mulheres outras e outros, tudo, são como pão e água. O homem é tão-somente olho e boca e ouvido e mão e nariz – é ver, é cheirar, é ouvir, é pegar... e comer. Todas as outras criaturas, para o homem, são como comida, são como pasto. Não há diferença, na perspectiva do homem, entre o capim, o boi e o boiadeiro...

3. A pedra, ele a toma na mão e, com ela, faz o que quiser – até jogar no lago. A fruta, ele estica o braço, apura o tato, arranca-a do pé e a come. O bagaço, joga fora. E se vai. O coelho, a cabra, o boi, ele cria, mata e, carcará, come. O peixe, ele pesca, assa, frita, ensopa... e come. O outro homem é, para ele, também isso, comida, na brasa, no espeto, na panela...

4. É que a pedra não reage. Ele a continuará pegando e jogando até só haver areia... A fruta até espera ser digerida, desde que os caroços sejam devidamente devolvidos à terra fértil... O coelho, a cabra, o boi, bem, esses não exatamente gostariam de ir ao fogo, mas, por mais que façam, não sabem fazer direito - na verdade, nada há que possam fazer... O que, no entanto, não é o caso do homem outro, que, querendo a mesma coisa que seu irmão-predador, sabe-lhe os truques, as manhas, as querenças, as táticas... têm-lhe os mesmo desejos...

5. Quando o homem encontra o homem outro, encontra, surpreso, sua imagem refletida, e não na aparência, mas na fala, na reação, na intencionalidade. Os dois querem pegar, os dis qere comer, os dois dizem "me dá!"... Não é a face do outro, Levinás, que me constrange – é a reação do outro. É o outro fazer o que eu faria, fosse eu ele. É a mão dele sobre a pedra que eu ia pegar, no talo que eu ia arrancar, nas orelhas do coelho, nas patas da cabra, nos chifres do boi, na minha garganta...

6. E ele faz. Quando faz. Quando não é pedra, quando não é fruta, quando não é coelho, cabra, boi, quando não é não-homem, quando é gente, quando é um como o homem, seu predador-irmão vê nele um obstáculo, alguém com quem tem de dividir o mundo. Não pode – mais – comê-lo. Deve juntar-se a ele – se não o destruir... Não é um igual - é um rival.

7. Destrói-se. Fazem-se conluios. Divide-se o máximo com o mínimo – e destrói-se o máximo possível de irmãos-predadores. Quanto menos homens, melhor. Faz-se dos homens e perto, continuidades de si mesmo, e, dos demais, não-homens, pedras, frutas, coelho, cabra, boi... Carcará voa alto, cai, pega, mata... e come. Agora, em bando.

8. Nada há no homem, senão sua reação, senão sua força, senão seu fincar de pé, firme, no chão – alto, lá, predador, que cá vai um forte! -, que possa frear o ímpeto de predação do predador-mor. Nada. Senão ele mesmo...

9. É preciso transformar o olhar do homem. É preciso que, depois de milênios olhando o outro como coisa, ele aprenda a olhar para ele como “outro”, como “quase-mesmo”, mas “outro” – alteridade, outridade. É preciso que o homem descentralize-se, e multiplique interminavelmente os centros. É preciso que, num primeiro impulso interior, de conversão, de espontaneidade inteligente, ele se curve ao outro, como um igual-diferente, uma não-pedra, uma não-fruta, um não-coelho-cabra-boi, um não-eu-como-quase-eu.

10. Não vem de fora do mundo essa informação, Levinás. Não há um Outro a ensinar coisa alguma. Porque, Levinás, o outro é coisa, que também todo Outro sobre o outro posto torna-se coisa – como coisa os deuses são para todos os homens, coisas de usar, para si, contra os outros, ou de só usar. Feuerbach sabia grande parte disso. Marx queria transformar o mundo – certíssimo. Mas começa pelo olhar humano. Não, “olhar humano”, não, que não existe isso: começa pela transformação do olhar de carne e osso de cada homem e de cada mulher.

11. É pois preciso começar um acidente genético na História. É preciso criar as condições ecológicas de, desenvolvendo-se homens e mulheres com olhares não-coisificantes, olhares, insisto, não-naturais, mas, agora, olhares humanizantes, outrizantes, alterizantes, esse nicho ecológico rompa, sistematicamente, pela educação e pela transformação material das condições de vida, de trabalho, de relação, com o passado natural de pegar, matar e comer... também o outro-coisa-para-mim.

12. A religião não logrou sucesso – e não o logrará, porque ela é alienação, seja ópio, sej cafeína. Ela lida com o homem como coisa a conquistar, como pedaço de terra, como chão, como carne de altar. Está perdida, a religião. Também ela deve transformar-se, converter-se. Enquanto o homem for útil para ela, não poderá ajudá-lo.

13. Somente um acidente biológico poderá fazer da humanidade, digo, do conjunto dos homens e das mulheres mapeados sobre a Terra, uma fraternidade – enquanto esse dia não chegar, estaremos, todos, comendo uns aos outros, mesmo quando juramos, na frente do altar, a dar a vida pela salvação dos mortos...

14 Ironia! Houvera levantado da terra um homem só, e ele teria sido um deus... Mas levantaram-se muitos. Somos diabos... Anjos, um dia? A terra pariu a consciência de si. Daí, advieram os outros... estranhos a tudo.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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