Falemos sobre as possibilidades de estudos sérios da Bíblia. Sim, estudos, no plural. Não há um apenas. O que não significa que todos sejam iguais ou levem ao mesmo destino. Cada um atende a interesses específicos, está atrás de respostas para perguntas específicas, e deve ser praticado por quem deseja aquele destino, porque faz aquelas perguntas. Sem a pretensão de ser exaustivo, relaciono os seguintes.
1. No campo histórico, as metodologias históricos-críticas, atualizadas no campo hermenêutico pelo interesse sociológico (abordagens histórico-sociais). Atenção: o que se quer aqui não é o personagem (Adão, Noé, Abrão, David, Elias, Jesus etc.). O que se quer aqui são os autores dos textos, esses mesmos que gente que poderia estar fazendo melhor o que dizem que se deve fazer diz que estão mortos. Mas não estão não.
Naturalmente que só deve praticar esse estudo sério quem tiver na cabeça esse tipo de pergunta: o que os autores históricos dos textos quiseram dizer. Para isso, se tem de colocar o texto no seu momento e contexto histórico exato. Deve-se operar com as epistemologias e as ferramentas da História, da Arqueologia, da Exegese, da Análise do Discurso. Deve-se ser escravo da tradução e da perspectiva histórica, e deve-se estar interessado única e exclusivamente no que o texto significava. Preciso falar, por causa dos críticos muitas vezes não muito honestos e/ou informados, que não se trata - nunca! - de assumir como autor dos textos aquele que a tradição diz que foi. Uma tolice. Trata-se de reconstruir o autor por meio do texto. Mas não apenas ele: ele, seu contexto histórico, seus destinatários, sua intenção, sua cultura, sua estratégia.
2. No campo literário, as metodologias de análise de narrativas. Para o método anterior, trata-se de ferramenta, não de abordagem. Para quem deseja transformar a ferramenta narratológica em abordagem, então a questão histórica se torna irrelevante. Não se tem mais em mente o autor, mas os personagens. O que eles dizem, para quem, no texto, estão dizendo, por que, no texto, estão dizendo, seu contexto frasal, retórico, sua estratégia. Como não se pode imaginar que esses personagens nasceram sozinhos, cria-se a figura retórica de um autor implícito e tenta-se sair da trilha de quem assume o autor real como chave e critério para compreensão histórica. A compreensão aqui é literária. O risco é a interpretação ficar flutuando sobre a autoridade de quem interpreta.
O problema de grande parte de quem lida com essa abordagem é gastar metade do tempo tentando convencer as pessoas que o método histórico é bobagem e grande parte da outra metade falando de teoria, filosofia, conceito, autores fundamentes, sem dar muita atenção, de fato, à interpretação, sem mostrar como se pode efetivamente demonstrar que o que se está dizendo ser o que o personagem quis dizer é o que se está dizendo. Além disso, a despeito de que a neurose dos praticantes extremos dessa abordagem seja matar os autores e menosprezar o contexto histórico que produziu o texto, é impossível assistir a dez minutos de apresentação da abordagem sem ouvir referência ao contexto social da época em que o texto teria sido escrito - é o curioso caso de assassinato seletivo: assassinam-se os autores, mas não os destinatários, os reis, os poderosos, a cultura da época. Todavia, a despeito ainda dos enormes defeitos de quem tenta praticar a abordagem, ela não deve merecer a crítica que seus praticantes merecem. Não é culpa da abordagem - é deles.
3. No campo teológico. Ah, achou que eu não diria que há métodos de interpretação sérios que sejam teológico, né? Bem, aqui, não me refiro à prática de cada crente interpretar como quiser o texto, cada qual aplicando a ele a sua própria fé. Isso se faz por dois defeitos: a fragmentação do tecido da instituição religiosa em que a leitura teológica é produzida (cada denominação cria sua própria doutrina e prende nela o texto sagrado) e o analfabetismo estrutural fundante da sociedade brasileira.
Levada a sério, a bordagem se traduz em verificar como os textos sagrados foram interpretados pelos teólogos, seja cada teólogo em particular, seja na perspectiva de determinada época ou de determinado concílio fundamental. Pode-se, por exemplo, estudar como determinada corrente da tradição interpretou determinado motivo da Escritura. Esse é um capítulo do que se chama de história dos efeitos, história da recepção. Tem sua utilidade, se feito com caráter absolutamente técnico, isto é, histórico, mas não resulta em nenhuma, em absolutamente nenhuma informação sobre o significa histórico do texto, tanto quanto, talvez em menor grau de radicalidade, não resulta em informações confiáveis sobre os personagens.
O que é que você quer fazer? Quer o significado histórico do texto? Quer entender como os personagens se movimenta nas cenas narrativas? Quer acompanhar o desenvolvimento histórico das doutrinas teológicas? Decida o que você quer, assuma a abordagem pertinente e pare de encher o saco dos outros falando mal do caminho dos outros. Cuide de seu caminho, porque ele pode estar totalmente errado: você pode estar tentando ir ao Japão montando em um jegue...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO