quinta-feira, 10 de julho de 2014

(2014/728) Da inexorável insuficiência ética cristã enquanto ética religiosa


Uma vez que a religião surgida como cristã não era a pregação do mal radical, é absolutamente compreensível que se possam identificar nela, isoladamente, valores que, mais de mil anos depois, emancipados de sua estrutura mitológica, converteram-se em valores humanistas. 

Não é decisivo pois, para a questão da ética e da moral modernas, essa identificação.

Já por volta da Renascença, eclodiu dentro da Cristandade um movimento humanista que, todavia, permanecia intra-igreja, porque o Ocidente, então, era um cômodo do edifício clerical.

Irmão histórico do humanismo moderno, o protestantismo surgiu carregando, também, valores emancipatórios. Todavia, da mesma forma como os valores estiveram presentes na origem da religião que se chama cristã, sem, todavia, poder levar-se à emancipação, nem a si mesmos nem à sociedade, no protestantismo também - os valores, ainda que humanistas, permaneceram a serviço da doutrina, da igreja, dos vícios clericais.

Quando, no marco didático da Revolução Francesa, inaugurou-se o processo histórico e político de emancipação da sociedade em face da religião, aqueles valores, pela primeira vez na história, puderam emancipar-se da tutela doutrinário-mitológica, ainda que com toda a carga machista e burguesa. Não é esse o ponto que aqui importa - a sua insuficiência inaugural. O que importa é sua condição emancipada inaugural: os valores libertaram-se da tutela divina e, agora sim, pela primeira vez, são realmente humanos.

É nesse sentido que opera meu discurso, quando eu digo que o crente, enquanto crente, não pode ter bom senso. Quanto mais fiel à doutrina e à igreja for o fiel, menos bom ele poderá ser, porque os valores da doutrina estão fixados no texto morto do Livro Sagrado, homofóbico, machista, escravagista, xenófobo e mais que o valha, sendo salvo somente pela leitura crítica emancipada. Mas o crente, enquanto crente, não é emancipado - se é, não é mais um crente clássico e fiel, é outra coisa.

Esse ser outra-coisa, esse pode mandar às favas as injunções pornográficas da fé e assumir-se como ser bom, independentemente da voracidade e perversidade da maldade intrínseca à doutrina, porque ele se emancipou e se entregou ao manejo da ética moderna, laica, secular. Esse ser outra-coisa pode ter bom senso e dizer não à igreja e à doutrina, quando elas lhe dizem que o homem é superior à mulher, que o gay é abominação e que a igreja é santa e o mundo, mau. Mas o crente, enquanto crente e se crente mesmo, não, não pode. Não consegue. É um escravo.

Eu lamento dizer isso, mas me soa como a mais clara verdade.






OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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