_ Mas como foi exatamente que Caim fez?
_ É uma ironia, meu caro, uma ironia...
_ Imagino que espere que eu pergunte "qual ironia?"...
_ Sim.
(...)
_ Está bem: qual ironia, Abel?
_ Ele me matou com o chifre do carneiro que eu acabara de sacrificar...
_ Valha-nos Deus!
_ Sim. Bem aqui. Tive tempo apenas de pôr a mão na ferida, olhar para o chifre sujo de meu sangue, encarar os olhos irados de meu irmão e tombar. Não doeu tanto a ferida quanto a traição...
_ Imagino. Por que você acha que seu irmão ficou com tanta raiva?
_ Bem, meu senhor, é mais do que briga de irmãos. O senhor sabe que havia o costume longo, longo, muito longo, das ofertas votivas de cereais, agrícolas, coisas de camponeses.
_ Sim, estou informado.
_ Pois então. Caim gostava de fazer suas ofertas agrícolas, principalmente as de cevada, porque a festa era muito alegre, se o senhor me entende...
_ Sim, como aquele festa de Boaz, em que ele ficou alegre, alegre, até cair...
_ Sim. São muito boas essas festas. Caim gostava.
_ Até cair...
_ Não, ele nem tanto. Muito sóbrio. Mas gostava das libações.
_ Compreendo. Você não?
_ Gostava, também, como não? Até mais do que Caim...
_ E então?
_ Bem, mudaram-se as regras. De um dia para o outro, proibiram-se os cultos nas vilas, os altares de libação e ofertas. Pior do que isso, os cultos agrários foram tomados por serviço a deuses não autorizados. Os cultos dos camponeses foram proibidos. Quem teimava era perseguido. Não foram dias fáceis... Foras dias horríveis.
_ E então?
_ Pois então. Eu não tive escolha. Aceitei o culto cruento e aderi às novas regras.
_ Caim não?
_ Não. Meu irmão era muito teimoso e independente. Quando lhe disseram que estava proibido de fazer as ofertas agrárias, e que deveria sacrificar animais n templo de Jerusalém, ele endoidou. Praguejou muito os sacerdotes, sabe? Cada palavrão que eu nunca tinha ouvido antes...
_ Não se submeteu?
_ Não. Na verdade, enfrentou os sacerdotes. Houve lá muita confusão, camponeses contra sacerdotes e o exército, uma confusão só - e eu só não direi "uma confusão dos diabos" porque naquela época não havia diabos, o senhor sabe...
_ É verdade... Mas não entendo, ainda, porque ele o matou...
_ Meu senhor! Faça as contas. Eu sou a personificação do templo, das novas regras, do modus operandi sacerdotal. Meu irmão é a personificação do campo, da tradição antiga. Matar-me significa a revolta que ocorreu entre eles, a memória dessa revolta e, claro, a condenação dessa revolta...
_ Você está me dizendo que...
_ Sim, que é simbólica nossa desgraça, figurativa...
_ Mítica...
_ Modos de dizer a mesma coisa: em mim está representada a revolta dos camponeses contra o Templo, revolta, em todo caso, perdida, porque, o senhor sabe, o sacrifício que ficou valendo mesmo foi o de sangue...
_ De grandes sucessos teológicos, não?
_ Sim...
_ Preciso encontrar Caim para entrevistá-lo...
_ Não será difícil. Caim é a alma condenada de todo aquele que recusa-se a seguir a ordem do poder religioso... Procure pelas ruas, e o encontrará lá...
_ Curioso, do jeito que o senhor fala, sou forçado a lembrar do Cristo...
_ Não é de todo improcedente, meu senhor...
_ Mas o Cristo não matou, morreu...
_ Bem, meu senhor, nenhum dos dois escreveu sua história. De comum nelas há a morte. No fundo, meu senhor, morreram ambos, o Cristo lá, e camponeses, cá, e a diferença é apenas quem escreveu as histórias. A do Cristo, os seus, a de Caim, os sacerdotes... Uma questão de partido...
_ Preciso achar Caim...
_ Pelas ruas, meu senhor, pelas ruas...
_ Uma última pergunta?
_ Pois não...
_ Como se sente, sabendo que sua memória é usada, no fundo, para defesa do culto cruento e do sacerdócio templar?
_ Não sinto nada. Não há personagem nessa história que não seja usado. Não importa como usem os personagens, meu senhor: importa como você se defende da história...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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