sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

(2012/057) "Quântica" e "mística" - a linha retoricamente frágil entre ciência e teologia



1. Não é minha "praia" e o que eu acho que sei eu o sei por meio de duas leituras fundamentais: Michel Paty (A Matéria Roubada) e, alguma surpresa?, Edgar Morin (O Método 1, a Natureza da Natureza). Michel Paty é físico e A Matéria Roubada é uma discussão crítica da supressão teórica da "realidade" e do subjetivismo a que se entregou a física teórica.

2. A crítica que ele faz é a mesma que eu faço - eu, por "sensação" de que algo vai muito mal nas divulgações da física quântica. Ele, analisando os argumento dos subjetivistas e refutando-os com argumentos do realismo crítico.

3. Minha sensação de que algo muito errado ia na divulgação da física quântica consolidou-se quando a Teologia enamorou-se das obras de "divulgação" de Fritjof Capra. Quando falo Teologia, não falo das conversas descompromissadas, mas das aulas de doutorado. Eu li O Tao da Física, O Ponto de Mutação e as As Teias da Vida e diria que o resultado é uma impressão mística de que a Física e a Teologia, finalmente, vão dar as mãos. Nada de mais concreto sobrevive, porque a argumentação inteira é mítica, mágica e teológica, sustentada pelo argumento de que, no campo da Física Quântica, a ciência transforma-se em "outra coisa" - quase-religião, mesmo, ou melhor, teologia.

4. Coisa completamente diferente, de natureza absolutamente oposta, é A Natureza da Natureza, de Morin. Nada de pedir que você tenha "fé", nada de converter conhecimento em magia, em misticismo. Conhecimento é uma coisa, fé, mítica, outra. Morin é um místico, de certa forma, mas seus livros nada têm de teologia. Você, durante todo tempo e ao fim da leitura, tem no que pegar - há solidez ali, há conteúdo. Não se trata de um castelo sintático de magia... Morin faz "exegese" da matéria e da vida - nada de Teologia Sistemática!

5. O efeito da leitura conjunta de Paty e Morin é avassalador - você perde a capacidade de "aturar" muito nhém nhém nhém pseudo-científico que inunda o comércio.

6. Quero ressaltar um ponto fundamental: a identificação dos níveis de realidade. Um erro comum da literatura de divulgação da quântica, que a torna misticismo puro, é, primeiro, adotar determinada perspectiva subjetivista de compreensão da Física Quântica (que Paty questiona) e torná-la a interpretação dada e acabada do sistema quântico, como se não fosse apenas uma percepção - a de grupos de Física Teórica (onde a "liberdade" dá ocasião a muito voo cego). Em seguida, aplica-se ao nível atômico/molecular, logo, nosso nível de existência, as "leis" - subjetivamente compreendidas" - do mundo quântico, como se os níveis de realidade tivessem todos as mesmas leis - e não têm!

7. Assim, eis um fenômeno comum nesse tipo de literatura: assume-se que as partículas não são sequer "reais", que são quase-espírito, que podem estar em qualquer lugar ao mesmo tempo, que são inacessíveis ao olhar, que criam alternativas concomitantes de ser e estar, essas coisas. Daí, acriticamente, aplicam essas "doutrinas" ao nosso mundo! Criam-se "paradoxos", universos paralelos, múltiplas realidades, manipulando, em nosso nível, doutrinas derivadas da interpretação subjetiva dos dados e, assim, aproximam, para delírio dos teólogos, os mundos naturais e sobrenaturais. E, cúmulo dos cúmulos, chegam a aproximar partículas atômicas e o fenômeno da consciência humana! Senhores, é a doutrina da alma, funcionando por trás dos bastidores...

8. Mas não tem jeito: alguém que se dedique a pensar criticamente, cientificamente, "racionalmente", terá de acostumar-se com seu espírito de estraga-prazer. A vontade de verdade, a vontade de saber, eu sei, é enorme em nós. Às vezes, ela chega a ser maior do que a necessidade de certificar-se de que não estamos sendo enganados, e, então, nos entregamos a sistemas de crenças sustentados, no fundo, por palavras, idéias, desejos.

9. O espírito crítico deve lutar contra a sua própria vontade de verdade. Quando ouvir aquele palestrante, usando o nome até da USP, para dizer que a ciência sabe que a pineal é a glândula humana que liga o corpo à alma (a tese é antiga, e está nos livros de Lobsang Terça-feira Rampa, antes de receber essa chancela tragicômica falso-uspiana), o espírito crítico deve imediatamente alertar-se de estar diante de um caso de self-deception, de um parvo ou de um caso de má fé. Teologia tibetana transformada em ciência!

10. O problema das ciências que se vão tornando menos científicas a cada dia é justamente esse: pode-se dizer qualquer coisa, qualquer coisa. Se soar agradável aos ouvidos, se atender à demanda de espiritualidade subjetiva ao gosto pós-moderno, se nos abrir a píneal aos "espíritos", fará sucesso. 



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

2 comentários:

Anderson Costa disse...

Caro Osvaldo,
Boa noite.

Conhece os trabalhos do Dr. Amit Goswami?

Ele desenvolveu uma teroria, estranha, de que a "partícula" elementar do universo é a "consciência". Consciência essa que ele identifica como sendo "Deus", ou como ele chama a "causação descendente".

Gosto muito do pensamento quântico, mas sinto grande medo de que a tendência seja tornar-se o que você disse. Teologia tibetana transformada em ciência...

Peroratio disse...

Bem, se você levar em conta o que Edgar Morin fala sobre a consciência, não há a mínima possibilidade de essa hipótese que você cita ter fundamento. Recomento o v. 1 de O Método. Quanto a "ficar com medo" dessas teorias. A esmagadora maioria delas é muito antiga, elaboradas pelas tradições filosófico-herméticas. Bom por a barba de molho. Mas apenas se você quer pensar mais cientificamente, mais racionalmente. Se for pra meter o pé na jaca, nenhuma diferença entre essas teorias e teologia metafísico-revelada".

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