1. Não é um texto fácil de enfrentar - Dt, 32,8-9. Há tantas informações aí, e empacotadas numa forma poética tão concisa - e, ainda, sendo vítima de correção teológica de escribas judeus -, que ousar se aproximar desses versos é um risco enorme.
2. Há uma semana, na aula de Teologia Sistemática - se não me engano - mencionei a passagem. Mas não a mencionei enquanto referência bíblica, mas apenas como temática mitológica: quando El dividia as nações, eu disse, entre os filhos dos deuses, a Yahweh coube Judá.
3. Por e-mail, recebo, hoje, a cobrança da referência. Trata-se de Dt 32,8-9. A leitura do texto hebraico me força a uma correção - não se trata de El, literalmente, mas de Elyon. Vou apresentar uma tradução rápida aqui: "quando Elyon deu as nações por possessão, quando ele repartiu os filhos de Adão, ele estabeleceu as fronteiras dos povos de acordo com o número dos filhos dos deuses - assim a porção de Yahweh foi seu povo, e Jacó o território de sua propriedade" (Dt 32,8-9) [uma vez que só considero uma tradução adequada quando se faz a partir da tradução de todos os textos ocorrentes na Bíblia Hebraica, e traduzi rapidamente, não considero a tradução "acabada", mas serve para os propósitos dessa comunicação].
4. Antes, uma informação. O texto hebraico não traz a expressão "filhos dos deuses" - traz "filhos de Israel". Os especialistas recomendam corrigir "filhos de Israel" para "filhos dos deuses", seguindo a tradução da Septuaginta e o texto hebraico encontrado em Qumran. A conclusão a que chegaram, e com a qual concordo, é que a evidência nos induz a dar por certo que um escriba ortodoxo, chocado com a implicação do texto hebraico, tenha "corrigido" a espressão "benê elohim" (ou equivalente), supostamente original (o que se verifica, ainda, na LXX e em Qumran), para a expressão "benê Israel".
5. Corrigida a tradução, é muito curiosa a sua informação. Judá coube a Yahweh por possessão, por desígnio de Elyon, no dia em que o próprio Elyon distribuía as nações aos filhos dos deuses. A estrutura narrativa sugere que Elyon fosse o chefe de um panteão de deuses, e que Yahweh lhe estivesse sujeito, tendo sido vinculado a Judá, como deus desse povo, na assembléia divina.
6. Naturalmente que estamos diante de uma camada da tradição muito estranha, se levarmos em conta a "teologia" final do Antigo Testamento - Yahweh é deus único, e todos os outros são ilusões e ídolos de barro. Bem, nos termos de Dt 32,8-9, as coisas não eram ainda assim compreendidas, e Elyon aparecia como um eficiente administrador dos mundos das nações, dando a cada deus um povo específico - e a Judá, Yahweh.
7. Dt 32, todavia, é um texto de polêmica com os "falsos ídolos", o que torna a referência ainda mais difícil de administrar. Sequer poderíamos dizer que se trate indiscutivelmente de uma narrativa antiga - o que, todavia, não se pode descartar.
8. Por enquanto, fiquemos apenas com essa constatação geral: há passagens da Bíblia Hebraica que são desconcertantes. A tradição ortofoxa tratará de aplainar as farpas, como quem usa uma plaina sobre uma tábua, para alisá-la, e deixá-la adequada ao uso. A pesquisa histórica, não - ela se agarrará a um curto-circuito desse tipo e o terá como a ponta de um fio solto, e tentará puxar a ponta do fio até descobrir, se for possível, o novelo de onde ele sai.
9. Esse fio de Dt 32,8-9 é um daqueles que nos levaria até as tradições mais antigas de Israel ou Judá, ou de ambos, os dias em que Yahweh não era, ainda, um deus único, mas dividia a teologia - a religião - com outros deuses, alguns deles até mais "eminentes" do que o próprio Yahweh.
10. Entre aqueles dias, antigos, e hoje, quanta distância. Mas aqueles dias ainda olham para nós com seu olho descuidado, e sua pele se arrepia nas páginas antigas das Escrituras. Todo o pó dos séculos não foi suficiente - nem com a ajuda zelosa do escrita santo - para ocultar de nós os dias inaugurais...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2. Há uma semana, na aula de Teologia Sistemática - se não me engano - mencionei a passagem. Mas não a mencionei enquanto referência bíblica, mas apenas como temática mitológica: quando El dividia as nações, eu disse, entre os filhos dos deuses, a Yahweh coube Judá.
3. Por e-mail, recebo, hoje, a cobrança da referência. Trata-se de Dt 32,8-9. A leitura do texto hebraico me força a uma correção - não se trata de El, literalmente, mas de Elyon. Vou apresentar uma tradução rápida aqui: "quando Elyon deu as nações por possessão, quando ele repartiu os filhos de Adão, ele estabeleceu as fronteiras dos povos de acordo com o número dos filhos dos deuses - assim a porção de Yahweh foi seu povo, e Jacó o território de sua propriedade" (Dt 32,8-9) [uma vez que só considero uma tradução adequada quando se faz a partir da tradução de todos os textos ocorrentes na Bíblia Hebraica, e traduzi rapidamente, não considero a tradução "acabada", mas serve para os propósitos dessa comunicação].
4. Antes, uma informação. O texto hebraico não traz a expressão "filhos dos deuses" - traz "filhos de Israel". Os especialistas recomendam corrigir "filhos de Israel" para "filhos dos deuses", seguindo a tradução da Septuaginta e o texto hebraico encontrado em Qumran. A conclusão a que chegaram, e com a qual concordo, é que a evidência nos induz a dar por certo que um escriba ortodoxo, chocado com a implicação do texto hebraico, tenha "corrigido" a espressão "benê elohim" (ou equivalente), supostamente original (o que se verifica, ainda, na LXX e em Qumran), para a expressão "benê Israel".
5. Corrigida a tradução, é muito curiosa a sua informação. Judá coube a Yahweh por possessão, por desígnio de Elyon, no dia em que o próprio Elyon distribuía as nações aos filhos dos deuses. A estrutura narrativa sugere que Elyon fosse o chefe de um panteão de deuses, e que Yahweh lhe estivesse sujeito, tendo sido vinculado a Judá, como deus desse povo, na assembléia divina.
6. Naturalmente que estamos diante de uma camada da tradição muito estranha, se levarmos em conta a "teologia" final do Antigo Testamento - Yahweh é deus único, e todos os outros são ilusões e ídolos de barro. Bem, nos termos de Dt 32,8-9, as coisas não eram ainda assim compreendidas, e Elyon aparecia como um eficiente administrador dos mundos das nações, dando a cada deus um povo específico - e a Judá, Yahweh.
7. Dt 32, todavia, é um texto de polêmica com os "falsos ídolos", o que torna a referência ainda mais difícil de administrar. Sequer poderíamos dizer que se trate indiscutivelmente de uma narrativa antiga - o que, todavia, não se pode descartar.
8. Por enquanto, fiquemos apenas com essa constatação geral: há passagens da Bíblia Hebraica que são desconcertantes. A tradição ortofoxa tratará de aplainar as farpas, como quem usa uma plaina sobre uma tábua, para alisá-la, e deixá-la adequada ao uso. A pesquisa histórica, não - ela se agarrará a um curto-circuito desse tipo e o terá como a ponta de um fio solto, e tentará puxar a ponta do fio até descobrir, se for possível, o novelo de onde ele sai.
9. Esse fio de Dt 32,8-9 é um daqueles que nos levaria até as tradições mais antigas de Israel ou Judá, ou de ambos, os dias em que Yahweh não era, ainda, um deus único, mas dividia a teologia - a religião - com outros deuses, alguns deles até mais "eminentes" do que o próprio Yahweh.
10. Entre aqueles dias, antigos, e hoje, quanta distância. Mas aqueles dias ainda olham para nós com seu olho descuidado, e sua pele se arrepia nas páginas antigas das Escrituras. Todo o pó dos séculos não foi suficiente - nem com a ajuda zelosa do escrita santo - para ocultar de nós os dias inaugurais...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
2 comentários:
Prezado Prof. Osvaldo;
Não vejo dificuldade nenhuma nesse texto.
A referência Strong mostra que "Elyown" pode ser traduzida como "O Altíssimo", é um título para Yahweh:
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05945 Nwyle 'elyown el-yone'
from 05927; TWOT-1624g, 1624h
AV-High 18, most high 9, high 9, upper 8, higher 4, highest 2, above 1, Highest 1, uppermost 1; 53
adj
1) high, upper
1a) of Davidic king exalted above monarchs
n m
2) Highest, Most High
2a) name of God
2b) of rulers, either monarchs or angel-princes
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Eu acho que os críticos bíblicos, embasados por pressuposições racionalistas e ateístas, ficam procurando "cabelo em ovo" e "chifre em cabeça de cavalo" no texto bíblico, para apoiar sua descrença.
Qualquer dificuldade serve de motivo para desqualificar o texto bíblico e tirar a credibilidade que moldou a Civilização Ocidental.
Não vejo essa dificuldade apontada por você em nenhum dos meus comentários bíblicos: Mathew Henry, John Gill, João Calvino etc.
"Não vejo essa dificuldade apontada por você em nenhum dos meus comentários bíblicos: Mathew Henry, John Gill, João Calvino etc."
Naturalmente que não. Fica registrada sua reação.
Saudações
Osvaldo.
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