segunda-feira, 29 de novembro de 2010

(2010/600) Da Vida e da Natureza - e da Ética e da Moral


1. O objetivo dessa postagem é pensar a implicação da Ética e da Moral num contexto de base natural, considerada aí uma evolução não-intencional do Universo e da Vida. O pressuposto básico é o seguinte: se a base da emergência humana é a Natureza, e se a Natureza é, como de fato é, amoral, segue-se que não há fundamento para a Ética e a Moral humanas. Quero (tentar) desmontar esse argumento. Jimmy eventualmente haverá de ler-me atenciosamente, porque há de começar duvidando da possibilidade. E talvez seja, de fato, impossível a empreitada. Todavia, o que já está feito não me interessa fazer de novo - salvo se o que está feito estiver, a meu juízo, errado, como nossa compreensão bíblica da serpente de bronze e da "criação" - aí, dedico-me a refazer, porque é como se fizesse do zero. Mas há coisas que estão prontas, e não vale a pena dedicar-se a elas. Já o enfrentamento do que parece ser "a" questão do fundamento de Ética e da Moral - o vínculo inexorável do Homem com a Natureza amoral, esse é um problema crucial - que me interessa justamente enquanto homem que sou.

2. Começo assentando o fato de que a evolução não parece ser teleológica. Deixemos o problema da "teleologia da criação" - nos termos da Teologia clássica, naturalmente - para os teólogos clássicos. Se há uma "teleologia da criação" girando a roda por trás da evolução, isso é coisa que não se pode "saber", e, nesse caso, das duas uma - ou se toma o caminho da ciência e seu muitíssimo apropriado "princípio de exclusão do transcendente", com todos os seus problemas, ou se escolhe uma ou quantas se queira dentre as cem mil doutrinas das cem mil religiões, e se as toma como revelação. Não o faremos aqui. Pensemos, pois, o Universo, como fenômeno ecológico, desenvolvimento aberto, desdobramento relacionado à sua própria história, desde o momento zero até hoje. Parte da Teologia já cedeu à evidência muito antes do século XX, cunhando o "deísmo", nada mais nada menos do que uma tentativa de harmonizar o que se cria, pela fé, com o que se começava a saber, pela ciência.

3. A Natureza, pois, não constitui, para os fins aqui propostos, uma "inteligência" intencional, decidindo, segundo a segundo, cada fato do Universo. Valho-me de Prigogine: as próprias "leis" desse Universo criam-se historicamente, à medida que as características intrínsecas dos elementos que se chocam mutuamente impõem a exigência de relações organizacionais estabilizadas. Para Prigogine, as "leis" do Universo são criadas pela propria história do Universo, probabilidades remotíssimas, antes de se atualizarem, e emergências estáveis, uma vez estabelecidas. Assim, dever-se-ia pensar a história do Universo - e da Natureza, para o que aqui me interessa - como a história de um processo aberto, ecossistêmico, e que fenômenos, disparados por eventos históricos, por sua vez disparam gatilhos organizacionais potenciais e probabilísticos, gerando clareiras de estabilidade num mar de aleatoriedade e caos.

4. A Vida deve ser pensada, então, nesses termos - ao menos sob o sol... Se admitida essa hipótese, a Natureza deve ser encarada não como uma "mãe": não se pode pensá-la como "inteligente". Não se pode pensá-la nem como um cego a tatear no escuro - isto é, uma sutileza antropológica - a manutenção de uma metáfora antropológica para a Natureza, disfarçando-a de cega. Não, nada há de "humano", de "teleológico", de "intencional", na Natureza. Ela se resume à estabilização aleatória e probabilística de organizações históricas facultadas pela dinâmica do movimento igualmente histórico da matéria. Destruição, caos, organização, estabilização, entropia...

5. Eis o sol. O sol o que é? Uma fornalha dos infernos! O sol é um diabo - ou um deus - a "queimar-se" dia e noite. O sol queima hidrogênio por meio de operações termonucleares. O hidrogênio é destruído - ou melhor, transformado em outra coisa, em hélio. O Universo é uma inimaginavelmente gigantesca máquina de consumir-se a si mesma, transformando pedaços de si em outras coisas: grande parte da Tabela Periódica nasce nas estrelas, produtos de destruição e criação em massa, resultado do peso das estrelas sobre si mesmas e das forças de repulsão que a pressão interna desse peso gera: o Universo se esmaga a si mesmo, com a mão de um ogro de fogo, dentro dos sóis, e, destruindo o que é, agora, renasce no que se torna, nesse instante.

6. Se descemos, agora, até a Terra, e pensamos o planeta e a vida, o processo é o mesmo. Seja o mundo bruto e inanimado, seja o mundo bruto e animado, a Natureza "funciona" por força da destruição - a destruição é a véspera da criação, e a criação destina-se, inexoravelmente, à destruição. As bactérias originais, surgidas há alguns bilhões de anos, consumiam a própria Tabela Periódica - como nós, humanos, conquanto a sirvamos no formato de cerejas em calda ou filé com fritas... Assim como o Universo mantém-se, sem que disso tenha consciência, consumindo-se a si mesmo, a Vida emerge como uma rotina ininterrupta de gula: enquanto sistema adaptativo aberto, a Vida depende de alimentar-se do que está fora de si, mesmo as plantas que, a despeito de produzirem seu alimento, dependem, para isso, da luz solar...

7. A Vida come a Vida. Ela não "sabe" disso. Lá, na dimensão da Vida, não há "a Vida", há apenas aquele sujeito vivo, ele, como centro do mundo - e mais nada (a "Vida", enquanto conceito, é uma abstração humana). Motivado por forças para ele desconhecidas, esse sujeito vivo dará toda liberdade à sua gula, e, movido pelos impulsos de sobrevivência, encenará o roteiro para ele desenhado pela história do Universo e da Vida. Ele não sabe, não há expectadores, ninguém sabe. Só é. Só acontece. Só come. Ou é comido...

8. Assim, a história da Vida, longa, muito longa, vai desenvolvendo-se da mesma forma que a do Universo - é a história dos encontros, dos enfrentamentos das forças, o escultor da diversidade da vida. Sempre no sentido de probabilidades muito remotas que, quando acontecem, estabilizam-se pelas forças da organização. À medida que a história avança, a Vida torna-se cada vez mais diversificada, lutando tanto contra as forças inanimadas do planeta, quanto contra si mesma, uma vez que a Vida logo aprenderá a nutrir-se de si mesma - não se comerá a Tabela Periódica in bruto, mas, doravante, na forma da própria Vida, bicho contra bicho, ave contra ave, peixe contra peixe, todos contra todos.

9. Explode a era das estratégias, das simbioses, das relações de cooperação e de estratégia. A vida começa a adquirir capacidades de cálculo! Uma estrela não pode decidir desviar a órbita para capturar um cometa, e, assim, aumentar seu estoque de comida... Um leão pode. Aliás, mais do que isso, ele pode, inclusive, escolher o gnu mais velho, ou o mais fraco, a cria, recém-nascida, como a água, que percorrerá, sempre, o menor caminho entre o lugar em que está e o próximo minuto - também a vida, quanto mais complexa, mais administrará a matança, sempre segundo a lei do mais forte e do menor esforço.

10. Não há moral aí. Não há certo e errado. Não há bom e mau. Se um vulcão dizima uma floresta inteira, e um relicário da criação desaparece na lava, quem prestará conta disso? Ninguém. É assim - e pronto. Não há alguém a quem culpar. Burgess Shale não é a cena de um crime, não é um caso de pecado - é um momento histórico do Universo, do Planeta, da Vida - e só. Não há crime, nem pecado, nem imoralidade na Natureza. Só a interminável sucessão dos minutos, a ininterrupta série de destruição e criação, de morte e de vida, de violência e serenidade - sem expectadores, sem expectativas, sem roteiro.

11. Mas - e Ruanda? E Treblinka? E Sarajevo? E Halabja? Bem - podemos "ler" os genocídios da história recente humana como uma linha amoral na longa série de destruições e criações do Universo e da Vida. Os chamados "imoralistas" do XIX o fizeram. Todavia, há uma substancial diferença entre o Universo e a Vida, de um lado, e o Homem, de outro - conquanto não se pode perder de vista, nem por um momento, que esse mesmo homem, conquanto distinto do Universo e da Vida é, ele mesmo, parte desse Universo e dessa Vida. Mas a distinção está no fato de que ao homem sobreveio um fenômeno fundamentalmente humano: a consciência.

12. Não é possível pensar a consciência senão como um acidente histórico, um fenômeno como outro qualquer dentre os incontáveis fenômenos, sejam de massa, sejam singulares, ocorridos nos bilhões de anos da história do Universo. A consciência é mais um. Talvez tenha ocorrido apenas aqui, na Terra - talvez, não. Seja como for, a consciência é um fenômeno de feedback muito específico. A Vida consiste em feedback: a ameba precisa saber se precisa comer, de modo que a "fome" é o resultado de uma rotina de feedback interno. E a ameba come o que está lá fora, de modo que ela precisa saber não apenas identificar o que pode comer, mas encontrá-lo, distingui-lo das coisas inúteis e perigosas, para o que serve o sistema de feedback externo. A ambos os sistemas, Edgar Morin chama de computação viva.

13. A consciência, ainda segundo Edgar Morin, constituiria a fabulosa capacidade do cérebro humano de computar não apenas o meio interno e o meio externo, mas computar a própria computação - isto é: de mapear, de receber feedback não apenas dos processos orgânicos do corpo ou dos acontecimentos externos ao corpo, mas mapear e receber feedback do próprio processo de mapeamento. Se os centros cerebrais vivos, antes, estendiam-se para dentro do corpo e para fora do corpo, monitorando o interno e o externo, agora, com a consciência - e isso é a consciência - os centros cerebrais retornam sobre si mesmos, computando-se-a si mesmos enquanto centros computantes. Em linguagem psicológica e filosófica - a consciência é a descoberta do si pelo próprio si enquanto si.

14. É no encontro dessa consciência com o outro, com a resistência do outro, com a força, a fraqueza e a linguagem do outro, o grito do outro, o pé do outro, que, durante milênios da história humana, a estratégia de sobrevivênvia promoveu a elaboração dos "quanta" de Moral e de Ética. Não vieram de fora, dos deuses, mas de dentro, das relações interpessoais, da história. Se foram legitimadas nos deuses, isso se explicará, certamnte, pelo fato de que a Moral e a Ética, posto que não "naturais", não "evidentes", constituindo, como constituem, uma supressão de poder, não encontram adesão harmônica e homogênea, e demandam, por isso, também como estratégia, discursos de persuasão e isso também depois da consciêcia histórica de que a espada, por si só, não produz efeito duradouro.

15. A Moral e a Ética são construções históricas da consciência histórica, sem fundamento outro que não o jogo das relações humanas, a "ciência" que tem o poder de seu poder, a "ciência" que tem a fraqueza de sua fraqueza, e os enfrentamentos retóricos, políticos, bélicos, inclusive, para a estabilização das construções frágeis que elas permitem. Não se pode esquecer que o mais recente fenômeno histórico civilizatório de Ética foi elaborado pela força da arma e da violência - a Revolução Francesa. Nesse momento, o Complexo do Alemão, na cidade do Rio de Janeiro, está tomado pelas tropas militares do Estado - e com o mesmo fim. Não, definitivamente não é natural a Ética. Natural é a violência, pulsional, pré-histórica, límbica... É necessário fazer muita força para manter-se... calmo. Os livros - os cursos - de Ética, ou serão livros - cursos - de História - ou não terão substância e fundamento...

16. Logo, só se pode pensar a Ética como desdobramento da conciência - e nada mais. Não há outro fundamento. E mais - não se pode retroagir a relação humana à Natureza, segundo o modelo dos imoralistas, pelo fato de que a Natureza joga o jogo humano, sem que tenha disso consciência. O que aconteceria com a Vida se, de repente, ganhasse consciência? Restar-lhe-ia o coração do Deus calvinista - certamente...

17. É preciso que a Ética e a Moral sejam pensadas e discutidas como emergências antropológicas, históricas, civilizatórias. Não-naturais, sob certo aspecto, são, todavia, naturais, no sentido de que correspondem a desdobramentos orgânicos - a supercapacidade cerebral humana de computar a própria computação viva, a sua própria computação, e adquirir "ciência" cognitiva do processo que é viver. A consciência é uma clareira de cognição em meio às trevas da não-cognição - o que poderia ser plenamente ilustrado pela declaração de Pascal: o homem é um caniço que pensa, e o esmaga o peso do Universo - mas ele sabe. Uma vez consciente, ao homem só é possível manter-se sob as "leis" amorais na Natureza se ele recalcar a sua própria consciência, se ele a negar, se ele fechar os olhos ao fato de que o grito, em sua própria linguagem - e isso é significativo - do outro apela ao direito do outro de viver, e viver bem, porque a vida que pulsa no forte, pulsa no fraco, e força e fraqueza são, a rigor, caracterizações amorais. A consciência, diante do outro, estende a mão, não a espada.

18. Não se pode, pois, contaminar a reflexão sobre a Ética, fazendo-a instalar-se diretamente na Natureza - assim como não se pode reduzir a psiquê ao cérebro - e isso, ainda que a Ética tenha surgido na Natureza, e a psiquê, no cérebro. É preciso desenhar o cenário completo - sim, a Ética, como tudo, como os deuses, como as fadas, como o triângulo, como o cinema, como a psiquê, são criações do Universo, da Natureza - nada, absolutamente nada que há, é não-natural. Todavia, a consciência emerge dessa Natureza como uma "novidade" - o retorno da vida sobre si mesma, como se seus olhos, pela primeira vez, se voltassem para si mesma, enquanto sujeito. E, em nós, a Vida sabe quem é e o que faz para ser quem é. Todavia, a Vida não se pensa, ela continua inexoravelmente seu balé de morte e de vida, de sexo e de carnificina - e apenas uma muito ínfima e insignificante parte dela, nós, assiste, perplexa, a essa inanimada orgia. Vivos, mas saídos da "Vida" pura e simples para a reino da vida consciente, não nos é possível mais arrazoados pré-conscientes, de modo que a Ética deve ser pensada a partir de sua base emergencial - as relações humanas, e aí permanecer.

19. Não é o Homem o pai da Ética e da Moral - são os homens. Não há um princípio ontológico e metafísico, natural, para elas - o princípio é orgânico e histórico: de um lado, a necessidade de eu me manter vivo, e bem, e feliz, e, de outro, a exigência e a necessidade de o outro manter-se vivo, e bem, e feliz. É ali, naquela zona bélica, no front, onde se encontram em conflito as minhas e as necessidades do outro, que se projetam as duas filhas da história - a Ética e a Moral. É preciso, pois, reconhecer o outro como outro-eu, é preciso reconhecer que a história já fez o seu trabalho em mim, e que depende de mim, agora, fazer o meu trabalho nela.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Joe Black (Joevan Caitano) disse...

O ser estar aí no mundo, é um ser estar aí com o outro.
abraços
Joeblackvan

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