quarta-feira, 26 de maio de 2010

(2010/394) Reação a Haroldo


1. Reajo ao post de meu amigo Haroldo - (2010/391) Intentio auctoris como forma de intentio lectoris. Não fosse eu, fosse outro, mas eu tenho um traço patológico, registre-se, haveria aqui apenas absoluta concordância com o post. Pudera! Haroldo refere-se a meu próprio post, e diz mais, como "flecha que acerta o centro do alvo dizer que atribuição de 'sentido' é função APENAS da consciência humana, da mente humana. Não há 'sentido' nas coisas, em nenhuma delas. Isso deveria ser tomado como ponto de partida nas discussões sobre hermenêutica", declaração em que estão, agora, misturadas tanto minhas quanto palavras dele, e deixemos que assim fiquem, misturadas. Hoje, aqui, vão somente concordâncias, à guisa de aprofundamentos. Amanhã, os "senões" de sempre...

2. Direto, então, aos pontos. Já nesse mesmo parágrafo, uma observação. Haroldo escreveu: "Não há "sentido" nas coisas, em nenhuma delas. Isso deveria ser tomado como ponto de partida nas discussões sobre hermenêutica. Somos nós, humanos, em razão da nossa capacidade de simbolização que atribuímos sentido às coisas, as quais, por si mesmas, não têm sentido. Isso, contudo, não significa dizer que os objetos, coisas, seres do mundo fenomênico não têm sua dinâmica própria na realidade do mundo que existe independentemente de nossa simbolização. Isso vale em particular para os seres animados". Concordo! Principalmente com a advertência de caráter não não-fundacional: "Isso, contudo, não significa dizer que os objetos, coisas, seres do mundo fenomênico não têm sua dinâmica própria na realidade do mundo que existe independentemente de nossa simbolização". Há, sim, não obstante o desejo e o "consenso" não-fundacionais, uma realidade além e aquém de nós, e essa realidade, Haroldo disse-o muito bem, existe e tem dinâmica própria independentemente de nós.

3. Aliás, nós mesmos, enquanto seres orgânicos, temos uma dinâmica própria, independentemente de nós, enquanto seres de consciência. Quem somos nós? O "eu" consciente - Ego, Id, Superego? O "eu" inconsciente, mas, ainda assim, próximo da consciência? O "eu" puramente biológico, enzimático, químico, o eu das necessidades fisiológicas, do suor e das computações de calor quente e calor frio? É você quem aumenta ou diminui o calibre de suas próprias veias, dependendo do calor? Mas, que "você" é esse? Assim, há um "eu", um "nós", que quase que vive independentemente do "eu" e do "nós" simbolizante, o qual, contudo, não vive sem o "outro" eu, o qual, por sua vez, sem aquele segundo "eu/nós", sequer pode ser chamado de humano. Somos vários. Nosso nome é multidão! E, contudo, somos um só - o "eu/nós" que se julga um.

4. O ser humano simbolizante é, apenas, a parte "superior" de um sistema de sistemas, que começa no nível físico (os elementos químicos que nos constituem), avança, por emergência organizacional, para o nível biológico (a vida a partir da qual nos constituímos como seres vivos), o nível químico, enzimático, hormonal, elétrico, em que nos constituímos como máquinas vivas efetiavemente em manutenção viva - ecossistêmica, inclusive!), o nível social (em que nos constituímos como seres de cultura e linguagem) e o nível existencial (em que nos emergimos como seres de consciência, seres noológicos). Ora, ora, ora - apenas esse último é um eu simbolizante (e que opera no nível anterior, naturalmente). Todos os demais, são como que outros "eus", não simbolizantes, sequer conscientes, e que têm, independentemente desse "eu" simbolizante último e "superior", uma dinâmica própria, real, verdadeiramente fenomênica.

5. O sentido é, pois, uma dimensão da consciência humana, e, eventualmente, da consciência de qualquer ser vivo que emerja na forma de ser-em-si, dotado, como nós, de consciência. Se o elefante adquirir algum tipo de "simesmaridade", de consciência, tornar-se-á, porque descolado tragicamente da natureza, também ele, então, ser simbolizante, ser dotador de sentido. Assim, há dois grandes tipos de objetos à nossa disposição - objetos inanimados, não intencionais, e objetos animados, intencionais. Aproximar-se deles, para "explicá-los", é aproximar-se de dois tipos diferentes de demanda.

6. No primeiro caso, eles não falam, não agem, apenas reagem, e não por força de si mesmos, mas por força de forças a que estão inexoravelmente sujeitos, passivamente. Aí está a ciência dura, a lidar com a Tabela Periódica. Pensemos o que quisermos pensar: aí há "verdadeiro" conhecimento duro do universo, um universo tal qual se apresenta a nossos sentidos e consciência, mas, sob nenhuma circunstância, devaneio e ilusão. É real. Não me crê? Bebe cicuta. Depois, me diz.

7. No segundo caso, os objetos vivos, há dois tipos. Os não-conscientes, não-racionais, e os conscientes, racionais. Os não-conscientes, animais, têm intencionalidade, têm "animus". Há uma "antropologia" - uma primatologia, uma simiologia, digamos -, porque macacos agem instintiva e socialmente, gerando "tradições" passadas de geração a geração, como, por exemplo, salgar amêndoas na água do mar, tomar banhos de água quente em nascentes térmicas japonesas... Não é a mesma coisa estudar o dente de um macaco, e estudar o comportamente selvagem de um bando de macacos. Um dente é um dente, e pronto. Um bando de macacos é uma grandeza dinâmica, que age e interage de modo determinado/criativo, e isso no nível de sua expressão teleológica, em grande parte, "d-n-ádica".

8. Já os homens e as mulheres, seres de sentido, agem a partir de ações intencionais significativas. Não apenas dão sentido às coisas, mas suas próprias ações são dotadas de sentido. É preciso captar o sentido da ação empreendida por esse e por aquela, para poder explicar o que se passa/passou. A ação só é aquilo que a intenção diz que ela é - a despeito de suas conseqüências, não de todo controláveis. A ação desenvolve-se a partir da intenção que a move. A intenção é a alma da ação. Há, decerto, os atos de loucura. Não é disso que falo. Falo das ações normais. Textos são, sobretudo, ações. Atos de intervenção social. Como as "intervenções urbanas", linguagens contemporâneas, no estilo do "meio e/é mensagem". Assim, ler um texto é recuperar a intencionalidade da ação interventiva, aquela, isto é, que gerou o texto. Nesse sentido, isto é, sem tratarmos o texto como objetto da Literatura, o texto é projeção intencional de consciência. Não se trata de uma pedra, de saber o que ela é, ou como ela veio parar ali: sozinha é que não foi! Trata-se de um vestígio de ação, um resíduo de ato vivo, projeção de mente humana, encrustração viva de intencionalidade política - no caso da exegese bíblica (não há "arte enquanto arte" na Bíblia, só há política, e nada mais do que política).

9. Assim, ler os textos bíblicos é observar a ação intencional que move a escrita, é recuperar a consciência projetada na ação, marmorizada, agora, na narrativa. Não! A narrativa não é a ação - ela é parte dela, resultado dela. Não se trata da ação de personagens, mas da ação de quem maneja as personagens, a rigor, a mente que as projeta, as desenha, as faz andar e dizer coisas, dentro da narrativa, mas oriundas da intencionalidade do ou da escritora. Um texto não é uma pedra que está ali. Não brotou de uma semente. O texto é uma singulariade reagente, resultado de provocações circunstanciais históricas. Achar, por meio da narrativa/texto, que reação é essa em que o texto se constitui, e que resposta é essa que ele contém, desde a mente de quem reagiu e respondeu, esse é o desafio da intentio auctoris programaticamente assumida como heurística exegética. Não é o que eu penso do texto. É o que o seu autor pensava. O resto, é "arte" - ou "política". E é aqui que os espíritos se separam. Aqui, nesse nó.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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