quarta-feira, 3 de abril de 2013

(2013/387) Quando exegetas confundem o presente, o passado e as razões pelas quais nosso presente deve ser o que deve ser


1. É revelador, curioso e constrangedor que exegetas renomados, alemães!, mantenham uma ideia sutil, mas perceptível, de enquadramento da cultura de hoje aos fundamentos escriturísticos... Ao lado do esforço acadêmico louvável, percebo, ainda, a retórica da fundamentação de valores atuais nos textos antigos.

2. Um caso. Estava lendo artigo de Frank Crüsemann, sobre (Adão e) Eva (o quarto, da coletânea Cânon e História Social) e, a despeito do modo como ele escreve, quase se pondo no nível do redator, quase me fazendo crer na própria narrativa (será esse seu intento?), esforcei me por interpretar sua retórica como estilo literário: ele e eu sabemos que se trata de um mito, e ele está apenas a fazer-me acompanhar o argumento da narrativa... Um voto de confiança.

3. Todavia, a certa altura, ele afirma que durante muito tempo houve, no Ocidente, e houve mesmo, a prática de interpretar a nomeação que Adão fez dos animais como sinal de sua autoridade. Imediatamente, Crüsemann acrescenta que "hoje" se "sabe" que a nomeação que Adão fez dos animais não pode ser interpretada como autoridade... É? Não?

4. Seu argumento se insere numa seção em que começa a tratar do papel da mulher na sociedade patriarcal e, em decorrência disso, em como ela foi enquadrada subalternamente na cultura cristã. Nesse ponto, Crüsemann faz como que apagar o pavio: a bomba é a narrativa da nomeação dos animais - se ela indica autoridade do homem, essa autoridade pode ser empregada, ainda hoje, para justificar o papel inferior da mulher...

5. Crüsemann, pois, cuida-se membro do esquadrão anti-bombas...

6. Há, parece, o reconhecimento de que, se lá era de um jeito, aqui deve ser também. Se lá, o homem era/tinha a autoridade, aqui deve ser/ter também. E mais - se queremos que aqui a mulher seja igual ao homem, temos de fazer ela ser igual ao homem lá também... O argumento oculto, mas claríssimo é: hoje é como antes, hoje deve ser como foi no princípio, nos textos, porque eles, os textos, são o fundamento do hoje...

7. Os gays estão fritos... Ou a criatividade dos exegetas deverá ser superlativa!

8. Ora, o governo da criação é entregue a Adão - se isso não é autoridade, não sei mais o que é isso ou o que seria autoridade... Crüsemann quer desmontar a bomba, mas está olhando para o fio amarelo, quando o vermelho permanece lá...

9. E, a despeito disso, passou da época de a sociedade submeter-se a predeterminações culturais vindas de textos antigos, de culturas anacrônicas. Os valores de cá é que devem julgar os valores de lá e os valores de lá podem até ser apontados, analogicamente, quando identificados aos nossos. Mas não há razão alguma, exceto dominação teológico-política, para nos mantermos aferrados a injunções morais, éticas, religiosas, políticas, de textos com dois e meio ou três mil anos.

10. Já flagrei Crüsemann em movimentos suspeitos e já escrevi sobre isso. O primeiro foi quando, descrevendo - corretamente - o processo por meio do qual se fez a lei judaica, até então civil, instalar-se no Sinai (aos cuidados dos sacerdotes), afirmou, em A Torá,  que isso se deu para, fora do tempo e dos espaços dos homens, da política, da ambição - ai! -,  a proteção da Lei no ambiente sagrado... É, das duas uma, muita ingenuidade ou muita política eclesiástico-programática... Nos dois casos, chega a ser risível...

11. O Adão de Gênesis 1,1-2,4a tem a autoridade não apenas sobre a mulher, mas sobre toda a criação. O Adão de Gênesis 2,4b-3,24, a despeito de ser o camponês maldito, ganha domínio sobre a mulher amaldiçoada. Seja "o" Adão (a meu ver, o rei), sejam os Adões (a meu ver, os camponeses), eles sempre têm, nos textos, poder sobre a mulher...

12. Foi assim, igualmente, enquanto Deus deu as cartas. O que interessa a nós é que, há mais ou menos duzentos anos, fizemos nossa revolução política, assumimos nós mesmos as regras da casa humana (a Ocidental, pelo menos) e passamos nós mesmos a decidir o que é bom e o que é ruim para nós - desde então, as mulheres passaram a ter papel ao menos retórico de igualdade. Não precisamos fazer textos antigos dizerem o que nunca disseram. Precisamos é nós mesmos assumir nosso destino.

13. A impressão que dá é que exegetas como Crüsemann são até boas pessoas, comprometidas com valores modernos - pluralismo, igualdade, liberdade, fraternidade -, mas pensam assim: os homens são maus, mas a Bíblia é boazinha: foram os homens que estragaram tudo, mas a boníssima Palavra de Deus nunca deu real fundamentação para as nossas maldades, inclusive de gênero... Isso é, naturalmente, homilia e pregação de domingo...





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...

Sobre ombros de gigantes


 

Arquivos de Peroratio