terça-feira, 2 de abril de 2013

(2013/384) Nós, os bons e eles, os maus, em Gênesis 4,17-24 versus Gn 4,25-26


1. E estrutura de Gn 1-11 tem muito a "revelar". Quero chamar a atenção para um fenômeno antropológico e sociológico muito comum em nossos dias e, parece, tão em moda à época da redação de Gênesis 4,17-26.

2. Gn 4,17-24 e Gn 4,25-26 me parecem dois textos construídos pela relação "nós" versus "eles". Eles, os maus versus nós, os bons.

3. Eles são os descendentes de Caim que, na seção anterior, Gn 4,1-16, é apresentado como o primeiro homicida - já tão cedo! Eu penso que a história seja mais do que isso - trata-se de ensinar ao povo que Deus não quer (mais?) ofertas agrárias - próprias das práticas campesinas: Deus, agora, quer sangue. Penso que estamos diante de uma narrativa mítico-literária, na qual Caim representa o camponês que se recusa a aceitar a mudança de paradigma religioso, implantada pela casta sacerdotal depois de 520 a.C, ao passo que Abel representa o modelo de judaíta que interessa à nova ordem. Que Caim é descrito como assassino de Abel me faz pensar que, em termos históricos, tenha havido enfrentamento entre os camponeses e o Templo.

4. Pois bem, a partir da transformação do camponês típico em rebelde e assassino, trata-se, agora, de criar as condições de explicação das razões pelas quais Deus destruiu todos os homens com o dilúvio. Trata-se, pois, de descrever o superdesenvolvimento do mal e seus responsáveis diretos.

5. Todavia, se apenas um homem vai sobreviver, Noé, e deverá ser ele a "manter" o sacrifício de animais tão logo termine o dilúvio, é necessário, então, primeiro, estabelecer que a ordem de sacrificar já estivesse em vigor (Abel) e que o culto a Yahweh já estivesse em pleno funcionamento (Enosh). Com o culto a Yahweh estabelecido e o sacrifício implantado, a narrativa de Noé (a "javista") está pré-cozida.

6. Resta, então, criar as condições para a deterioração dos "homens". 

7. A isso se chegará por dois caminhos. Um deles, Gn 6,1-4, tratará de pôr a derradeira lenha na fogueira com a menção ao fato de os filhos de Deus, isto é, os seres celestes (hoje os trataríamos por "anjos") terem descido das alturas e se "engraçado" com mulheres. Antes disso, porém, a própria comunidade humana já se teria deteriorado significativamente - e essa deterioração encontra-se descrita em Gn 4,17,24, cujo oposto está em Gn 4,25-26.

8. Fala-se, pois, em Gn 4,17-24, da descendência de "Caim". Aí, três categoriais sociais são descritas: os criadores de gado, os músicos e os ferreiros. Parece que são todas categorias não relacionadas à terra - são nômades. O problema desse tipo de categoria social é que funcionam como transportadores de "novidades", de mitos distantes, de ideias não conformes à tradição local. São dispersadores da atenção, digamos assim.

9. A República de Platão os trata, a seu modo, como os "poetas": eles devem ser enxotados. Por quê? Porque, na Cidade Bela, que Sócrates ensina a construir, o controle social baseia-se no uso de mitos, sob rígida tutela do Governo. Os poetas, todavia, dispersam a atenção da população, fazendo-os ouvir mitos que não são os de interesse dos controladores do regime, promovendo potencial subversão. Por isso, devem ser enxotados.

10. Os descendentes de Caim são descritos por meio de categorias sociais dessa natureza: são gente que não está presa à terra, como o próprio Caim, "errante". E o problema alegado pelos redatores e que essa errância os desterritorializa, e, no extremo, faz com que percam a relação com a terra, seus valores, suas normas, seus deveres. Na prática não se submetem ao controle local. Desestabilizam a tradição, enchendo-a com ideias de fora...

11. Eles são os maus. Já nós somos os bons. Com relação a nós, nas não se trata mais da descendência de Caim, mas de Adão e Set. Sete tem Enosh como filho e é com Enosh que começa o culto a Yahweh - já tão cedo! Eles, os descendentes de Caim, estão desapegados à terra, errantes, nômades, vagabundos, violentos, maus. Não  invocam a Yahweh. Nós, que aqui residimos, nós somos o povo de Yahweh - os bons de Yahweh. Nós - eles, não.

12. O conjunto da descendência errante de "Caim e o resultado da expedição erótica dos "anjos" torna a civilização intolerável. Yahweh se arrepende de ter feito o homem e decide matá-los a todos - a rigor, "lavá-los", como quer o termo hebraico: porque foram feitos de barro e água - e basta jogar uita água sobre eles que se dissolverão como barrão não cozido...Salva-se, naturalmente, a descendência de Enosh - nós... Eles são destruídos... 

13. Nós e eles é uma relação sociológica que permanece. Ouve-se, ainda, a afirmação de que os ateus são maus e os cristãos são bons, declaração que não tem nenhum sentido e, todavia, move o imaginário e determina relações sociais de modo profundo. Em João 1, por exemplo, a comunidade joanina se expressa por meio da mesma categoria sociológica: eles, os judeus, e nós, os filhos de Deus... Eles, os maus, e nós, os bons...

14. Quantas vezes, todavia, é bem o inverso...

15. E, se nos aproximarmo mais um pouco, veremos que o nós e o eles serve apenas para tornar preto e branco o que é um imenso tabuleiro degradê, com branco e preto nos dois lados, gente boa entre eles, gente má entre eles, gente má entre nós, gente boa entre nós: ser de lá ou de cá não é significativo...




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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