1. Nos mitos relacionados aos deuses que morrem e ressuscitam, comuns no Antigo Oriente Próximo e na grande bacia do Mediterrâneo, ao Deus (da vegetação), morto no inverno, corresponde a jornada da deusa ao mundo dos mortos - descensus ad inferos - para o resgate do Deus/marido morto.
2. Cito dois casos: Ishtar, que deve ir ao mundo dos mortos, resgatar Tamuz (esse plano encontra-se, provavelmente, "atualizado" no Livro de Ester, que, aliás, tem o mesmo nome da deusa) e Cibele, que deve ressuscitar o amante morto, Attis - sucesso que obtém em três dias...
3. Não são apenas esses dois. O motivo é comum e representa, na forma do mito, a morte da vegetação, no inverno gelado, e seu retorno, na primavera.
4. Pergunto-me se, dado o fato da absoluta impossibilidade de os primeiros cristãos copiarem tais mitos em detalhes, dada a auência de uma deusa-consorte, não acabaram traduzindo esse mito na forma da descida que ele mesmo, Cristo, faz aos mundos inferiores...
5. Talvez, a figura da deusa que é responsável pela ressurreição do deus morto esteja presente na tradição de que foram as mulheres - mulheres! - as primeiras "testemunhas". Que essa tradição vá ser praticamente apagada pelo clero que logo se forma nos primeiros anos do Cristianismo nada diz sobre as origens da tradição, mas sobre seu destino: para todos os efeitos, podem-se encontrar os motivos do mito do deus morto e ressuscitado, transformado na tradição de Jesus.
6. Parece que há uma fôrma mais ou menos obrigatória, uma espécie de leito sobre o qual as tradições de uma época se vêem obrigadas a correr. A negociação talvez se dê na forma de adaptar o detalhe ao novo contexto, como, por exemplo, o arco-íris no dilúvio - no mito babilônico, é a diadema de Ishtar, chorando seus filhos mortos na praia, mas, quando os judeus copiam o mito, mas não podem pô-lo (mais) sobre a cabeça de uma deusa, transformam-no no sinal da aliança.
7. O resultado da tradição é, assim, o fruto de uma sobredeterminação cultural, adaptada, em contexto de conflito e interdições traditivas locais: copia-se tudo o que se pode e adapta-se o que seria constrangedor...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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