sábado, 30 de março de 2013

(2013/365) Dimas, o bom, e Gestas, o mau - reflexão sobre como somos seletivos e corporativistas


1. Desde tão cedo quanto o segundo século, "conhecem-se" os nomes dos dois "malfeitores" que foram crucificados com Jesus - um era Gestas e o outro era Dimas.

2. Parece-me óbvio que estamos diante de uma prática comum desde séculos antes: a menção anônima ou pouco referenciada de certas personagens enseja a elaboração de narrativas inventadas - como é o caso de Jonas e Dan(i)el, por exemplo. Nesse caso, os Evangelhos falavam de dois malfeitores, mas não lhes dava o nome - era possível, pois, inventá-los, como aos nomes dos magos que, aproveita-se, convertem-se em reis...

3. Pois bem. Gestas e Dimas. Os Evangelhos Sinóticos os dão, ambos, por malfeitores (Marcos 15,27, Mateus 27,38.44, Lucas 23,33). Já João dirá apenas que eram dois, mas parece julgar inoportuno precisar-lhes a carreira - isso, se não recusa a tradição. Mateus 27,44 diz que os dois escarneciam de Jesus - tanto um, quanto o outro, jogando-lhe na face o fato de ter salvado a tantos e de não poder, agora, salvar-se a si mesmo.

4. Até aqui, tudo igual: são ambos ditos malfeitores e, se João não o diz de um, igualmente não o diz de outro. E, quando Mateus os põe a zombar, põe os dois, não apenas um...

5. Lucas, todavia, nesse ponto, tem outra versão. Não foram os dois malfeitores, foi apenas um deles que zombou (Lucas 23,39). O outro, além de não ter zombado de Jesus, ainda repreende o escarnecedor (v. 40), reconhecendo a sua culpa (v. 41)! Finalmente, dirige-se a Jesus e pede que se lembre dele quando estivesse em seu Reino (v. 42), ouvindo de Jesus a resposta, objeto de polêmica quanto a quando estaria o "bom ladrão" com ele, se já "hoje", se um dia desses...

6. Curioso que Mateus e Lucas tenham divergências... Um bom leitor das Escrituras, ciente do zelo pela verdade que a caracteriza, imediatamente se lembrará de Lc 1,1, e de como ele foi criterioso com entrevistas... Certamente procurou testemunhas da cruz que teriam anotado tudo conforme a coisa se deu, a despeito, é claro, de o próprio Lucas, por quatro vezes, em Lucas 24 e em Atos 1, desenhar as testemunhas oculares como gente tarda de entendimento e lerda para compreensão...

7. Seja como for, a tradição logo fará do primeiro, Gestas, o "mau" e, do segundo, Dimas, o "bom". Isso, a despeito de Lucas fazê-lo confessar que fora mau (Lc 23,41). Ora, se ele mesmo, o "bom", reconheceu-se mau, e isso na versão em que ele se comporta como uma espécie de herói in extremis, qual a razão de a tradição tê-lo feito "bom"?

8. Será que a explicação é partidária, ideológica e corporativista? O primeiro é mau porque, além de malfeitor e ladrão, escarnecedor e zombeteiro, não se converte, não pede a Jesus um lugar no Reino. Já o segundo, a despeito de malfeitor e ladrão, a despeito de réu confesso, é "bom" porque, dirigindo-se a Jesus, pede para entrar. Ou seja, o primeiro não é dos nossos - o segundo, sim. O primeiro é pagão, o segundo, cristão...

9. Espírito de partido... Corporativismo... Esse sujeito bom não é nosso apenas de agora. Os nossos o são desde sempre - são, digamos assim, com o risco dos anacronismos, predestinados. Não foi ele, por exemplo, quem acolheu a família divina, quando fugia de Herodes? Ele os protegeu em toda a sua caminhada pelo deserto, que para isso fora feito ladrão - e príncipe dos ladrões, porque alguém "bom", encarregado de preservar a Sagrada Família, só podia ser alguém de nobre linhagem! Por isso, pelo fato de ser dos nossos, merece a bênção de ser flagelado como Jesus e de ser crucificado, cravos nos pés e nas mãos, conquanto alguns descuidem dessa memória de mérito...

10. Já o outro, bem, o outro não conta: é um coadjuvante, um figurante - e, sobretudo, um sujeito mau. A prova de sua maldade intrínseca é justamente o fato de não ter-se tornado... um de nós, um dos nossos...

11. Esse padrão sócio-psicológico opera até hoje. Ele não é crente, não presta, é pagão, não presta, é ateu, não presta, é gay, não presta. Se não é dos nossos, não presta. Por outro lado, se é dos nossos, não importa o que faça, o que diga, quem seja, é dos "bons", é "de Deus"...

12. Não é uma boa prática ética. Não faz de nós boas pessoas. Faz de nós juízes de maus pensamentos e filhos de partidarismo pecaminoso.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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