1. O problema deve estar comigo (ou em mim). Tenho tido conversas com meu colega de cátedra, Julio Zabatiero, e o resultado tem sido o mesmo a que chegamos a turma de "Leituras Contextuais da Bíblia" e eu, quando conversamos sobre autor, texto e leitor. Nas conversas com Zabatiero, devo confessar, sou mais comedido. Com a turma, a impaciência manifestou-se retoricamente, e a confessei de imediato, tão logo ela tenha tomado minha alma: "eu confesso que não consigo entender como pode ser tão difícil para vocês entenderem"... E, me lembrando de Zabatiero, a ressalva: "o problema deve estar comigo"...
2. O contexto da conversa é o resumo final da disciplina "Leituras Contextuais da Bíblia". Para mim, esse tipo de leitura se situa no campo das "produções de sentido", próprias das leituras centradas no leitor. Em sentido amplo, amplíssimo, são aproximações alegóricas do texto. Quando, por exemplo, uma feminista (ou qualquer leitor) se depara com textos em cuja narrativa já estão questões relacionadas à mulher, nesse caso, não, mas há leituras "feministas" que fazem qualquer texto falar de mulher. O mesmo vale para leitura de negros, pobres, gays, índios... O leitor, engajado, faz o mundo à sua volta reduzir-se à sua ideologia - e os textos caem nesse armadilha. Tecnicamente é possível - tanto é que as leituras se fazem: mas são baseadas no controle ideológico - e não técnico-metodológico - que o leitor exerce sobre o texto. São alegorias cuja chave é a situação existencial do leitor.
3. Para esclarecer essa questão, e não é dela que quero falar aqui, retornei ao ponto clássico das teorias de leitura. Recapitulo, aqui, a coisa toda do jeito que a apresentei.
4. O que é um texto? Uma expressão de consciência registrada por um sujeito histórico, com uma intenção histórica, específica, única. Um texto pressupõe, obrigatoriamente, sem exceção, a) um autor (textos não nascem sozinhos), b) ele mesmo, o texto, e c) um leitor. Mas ele é, em si mesmo, um suporte físico, não-intencional, polissêmico, instrumental.
5. É não intencional porque ele sequer vida tem. Intenção é propriedade da vida - logo, do autor ou do leitor. Do texto, não. É a mesma coisa quanto a questão do "sentido". Um texto, enquanto texto, se isolado do leitor ou do autor, não tem - ele mesmo, em si - sentido. Sentido é faculdade da psiquê, não da palavra, do acúmulo de palavras. Assim, o texto se torna o que uma palavra é: um suporte potencial de sentidos, de inúmeros sentidos, quiçá, infinitos.
6. Assim, se eu pego um texto na mão, tenho diante de mim um instrumento potencial de atualização de sentidos. Os sentidos potenciais são "reais", mas apenas potenciais. Estão lá, todos os possíveis, mas só existem como antecipação de leituras, porque só se materializarão se houver leitura, uma vez que é apenas o leitor quem atualiza a potência polissêmica do texto - é o leitor quem lê! Há sentidos potenciais, "reais", que, todavia, jamais serão atualizados, jamais virão aos olhos de um leitor, porque jamais alguém lerá o texto de tal jeito que pudesse lê-lo daquele jeito...
7. Assim, inerte e potencial, o texto não tem as faculdades do leitor. Quando o leitor, aí sim, o lê, é o leitor quem opera a ação. O que acontecerá na leitura é que, se ela se der de forma "automática" - isto é, não crítica, não metodologicamente operada, mas de forma "espontânea" -, fatalmente o leitor atualizará cada palavra do texto, bem como seu conjunto, a partir de seu próprio contexto, isto é, o contexto do leitor, como, por exemplo, faz um batista quando lê a Bíblia, e a lê, automaticamente, como um cristão evangélico batista, quando, a rigor, a Bíblia não é nem cristã muito menos batista, mas judaica e, quando muito, judaico-cristã.
8. Cada leitor, situado que está em seu próprio contexto, atualizará o texto a partir de seu próprio mundo. lerá, entenderá, interpretará cada palavra do texto a partir de seu dicionário cultural ("ruah", isto é "Espírito", em Gn 1,2, para o cristão batista, será lido, automaticamente, como o "Espírito Santo"), mas será lido como "a força ativa de Deus" pelo testemunha de Jeová, quando não o é nem uma coisa nem outra para o judeu.
9. É "natural" que cada leitor leia o texto a partir de sua própria unidade de tempo, lugar e cultura. A polissemia intrínseca do texto promove o fenômeno. Não é o texto que diz. O texto apenas funciona como suporte para que o leitor diga. Umberto Eco deseja que haja um "limite" aceitável para que o "texto" diga alguma coisa contra a ideologia do leitor - mas é apenas desejo de quem não quer ter que optar pelo "autor" ou pelo "leitor" e, juízo meu, inventa a existência de uma "intenção do texto", a meu ver, inexistente sob qualquer aspecto. Um leitor "letrado", que domine sintaxe, mas que leia no "automático", usará seus conhecimentos de sintaxe na atualização de sua leitura, na apropriação da polissemia do texto.
10. Mas veja bem: cada leitor só lê uma e uma única coisa no texto. A polissemia é uma faculdade do texto, não do leitor. O leitor age como o autor. O autor diz uma coisa, o leitor lê uma coisa. É o texto a caixa de sucrilhos, mas o leitor só come um dos flocos de milho...
11. Sim, o leitor pode "brincar" de interpretar o texto de múltiplas formas. Pode. Nesse caso, ele desliga o automático e começa a pensar em novos sentidos possíveis para o texto. Obterá um número proporcional à sua criatividade. A princípio, infinitos sentidos. Mas essa já não é uma leitura cultural "automática", mas um "jogo". Posso forçar minha mente a ler um texto como se eu fosse chinês, isto é, atualizando cada palavra do texto a partir da cultura chinesa. Ou tupi. Posso "emular" uma cultura em minha mente - desde que eu a conheça razoavelmente bem. Mas já não serei "eu", em meu ambiente, lendo. Serei eu, instrumentalizando, teleologicamente, intencionalmente, um saco de sentidos. É o mesmo leitor, mas não é a mesma leitura.
12. E o leitor pode fazer mais. Ele pode, já vimos: a) ler automaticamente, a partir de sua própria ideologia, ou b) pode ler "instrumentalmente", numa espécie de "tempestade de ideias" aplicada ao texto, tirando deles quantas interpretações conseguir. E, além disso, c) pode tentar, metodologicamente, encontrar, no saco de sentidos possíveis do texto, no palheiro que ele é, a agulha que lá colocou o autor, o sentido - único - que lá registrou aquele que o pensou e escreveu.
13. Nesse caso, o leitor terá de "recriar", em sua "mente", esse sentido, utilizando-se do texto e, a partir do texto, com técnicas de leitura histórico-crítica, histórico-social, arqueológico-textual, filológica, com o apoio de técnicas de narratologia, semiótica e análise do discurso (mas a base ou é histórico-crítica, ou, arrisco o juízo, já não é possível o projeto), para chegar àquele sentido - único - que lá, no texto, colocara o autor.
14. Nesse caso, ainda, tanto a cultura e a ideologia do leitor quanto a polissemia do texto são obstáculos. Porque o leitor quer "ouvir" o que o autor "disse" (nesse sentido, o texto converte-se em discurso), mas, antes que possa ouvir o autor, sua própria voz falará mais alto, de tal modo que ela é o primeiro "inimigo" a ser vencido. Vencida a própria ideologia, e uma vez que ainda não está materializada a intenção autoral, a mente do leitor dançará, perdida, sobre a polissemia do texto. Nesse caso, deverá interceptar, num ponto médio e crítico, as informações do texto e da cultura do texto para, dentre os diversos comprimentos de onda presentes no espectro [do texto] (perceba-se a metáfora), identificar a que "altura" de onda corresponde a mensagem original do autor, ou, dito de outro modo, dentro das leituras possíveis do texto, qual é a que o autor lá colocou e que não decorre de acidente polissêmico, mas do contato, à distância, entre duas consciências em "comunicação" programática e metodológica.
15. É óbvio que quem opera cada uma dessas três formas de leitura é o leitor. Essa é a crítica dos alunos - e, até certo ponto, de meu colega, Zabatiero. Todavia, se não me iludo, o leitor faz coisas diferentes em cada uma das leituras, e é essa intencionalidade operacional que define o que é distintivo e crucial entre essas diferentes formas de leitura.
16. Num caso, ler é apropriar-se ideologicamente do texto. Coincidem, aí, a operação do leitor e o mundo do leitor. O que ele entender, está bem, está certo - toda e qualquer leitura a que ele chegasse estaria certa, porque é seu mundo e vida, conquanto ele chegará a apenas uma, porque uma é sua vida e mundo. Nesse caso, o texto é um espelho: cada leitor, uma imagem...
17. Noutro caso, ler é como olhar para nuvens e discernir ("projetar") nelas imagens: uma ovelha, agora uma vassoura, agora uma pera, agora o Chávez, agora um mico-leão dourado... Não, a nuvem não é nada disso. Mas - sim! - qualquer um pode ver isso nelas... É o leitor quem opera o processo, e é ele também quem decide que imagem está vendo, mas já não há vínculo unívoco entre sua ideologia e as imagens que vê - o céu é, agora, um caleidoscópio...
18. No terceiro cado, o leitor está tentando "comunicar-se" como o autor, tentando ligar o fio entre a intencionalidade ativa do autor e a intencionalidade passiva do leitor, isto é, ativamente, metodologicamente, criteriosamente, o leitor está tentando pôr-se na posição adequada para entender o que o autor do texto desejava que ele entendesse. É óbvio que ainda é o leitor que opera o texto, na tentativa de, por meio do texto, ouvir o discurso histórico, intencional, o único discurso histórico intencional, que o texto comporta. Mas o leitor tem de fazer desse texto um telefone, um megafone, uma voz. E não a sua.
19. É como um motorista. Hoje de manhã, ele pegou seu carro e dirigiu até a orla. Foi lá porque é lá que ele gosta de ir, que ele vai. Lá é seu lugar de descanso... À tarde, ele vai pegar o mesmo carro e vai passar por todas as ruas de seu bairro, para ver algumas que ele nunca viu. Usará um mapa. É apenas um jogo, um reconhecimento topográfico - nada mais. Agora, de noite, aquela morena de nome Bel o espera num pequeno restaurante de uma rua iluminada e segura, para jantarem uma comida suave, um salmão grelhado, eventualmente. Se ele errar o restaurante, se ele não chegar lá, onde ela o espera, chegará a qualquer lugar possível, mas não lá, onde ela está. E veja: ela o espera - mas é ele quem tem de ir lá, sem errar o rua...
20. Não entendo a dificuldade de meus interlocutores entenderem a diferença.
21. Naturalmente que cada modo de leitura - a) buscar no texto o que o próprio leitor já tem para dar a si mesmo, b) buscar no texto as suas possibilidades latentes, c) e buscar no texto o discurso do autor - tem suas implicações e suas exigências. Uma vez que cada uma delas é uma atividade intelectual diferente, cada uma delas tem restrições específicas, desafios próprios, imposições inegociáveis. Mas essa é outra história.
22. Interessa-me apenas deixar claro que sei que, em todos os casos, é o leitor quem lê. Mas o leitor pode fazer coisas diferentes com o texto - inclusive deixá-lo, fechado, sobre a mesa. O problema não é ter o livro sobre a mesa - o problema é abrir e saber o que vai fazer com ele - e o que é mais grave: fazer, mas saber o que está fazendo...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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