1. As magistrais, as verdadeiramente extraordinariamente bem escritas 1.200 páginas de Nietzsche, o rebelde aristocrata, de Losurdo, abrem-se com cinco epígrafes - as últimas três das quais do próprio Nietzsche. Interessam-me, aqui, as duas primeiras. Você só as capta em toda a sua capacidade de síntese quando termina a jornada de 1.200 dias...
2. A primeira, de (Kurt) Tucholsky: "quem não o pode reivindicar? Dize-me apenas de que precisas e te encontrarei uma citação de Nietzsche [...] Pela Alemanha e contra a Alemanha, pela paz e contra a paz, pela literatutra e contra a literatura" (Dedicatória de Nietzsche, o rebelde aristocrata).
3. Losurdo deixará muito clara a razão dessa possibilidade de flagrar Nietzsche na defesa ou no ataque de qualquer ideia. E a razão é tão simples, que constrange: Nietzsche é um homem engajado, um homem político, de posição dogmática e inflexível. Toda e qualquer tema que vá ao encontro de si, com esse tema ele comunga, ele o defende, elogia, louva, escreve-lhe poemas em Zaratustra. Todavia, se um tema vai de encontro ao que ele ama e crê, então, meus amigos, contra isso ele levantará bandeiras, trincheiras, evocará a peste e os demônios, disso debochará, isso ele reduzirá a nada. Nietzsche é assim - parcialíssimo. Um radical da parcialidade...
4. Por isso louvará a Alemanha - aquela aristocrata. Mas há de desancá-la, quando enamorar-se do liberalismo, do socialismo, da democracia. Por isso ele amará a guerra - quando ela puser no seu lugar a plebe e a chandala. Mas a odiará, quando pôr em covas a fina-flor da nobreza mundial. Por isso ele elogiará os grandes poetas, se são, também, aristocratas e insensíveis, se não lhes palpita o coração de gelo. Mas tratará como degenerados e afeminados os poetas da compaixão e da justiça, essa modernidade mórbida, isto é, igualitária. Nietzsche é assim - seu espelho é a crueldade e a insensibilidade eugênico-escravagista: todo o resto é deformidade... Ela ama a Humanidade - formigueiro humano, curral de bestas sob o carro da Civilização.
5. A segunda epígrafe, formidável, de Pascal: "todo autor tem um sentido no qual todas as contradições entram em acordo, senão não há nenhum sentido [...] Por isso é preciso procurar um que concilie todas as contradições" (idem). Mais uma vez, Losurdo faz juz à epígrafe que elege, e encontrará esse ponto de conciliação numa sempiterna posição político aristrocrática do filósofo, desde os tempos de O Nascimento da Tragédia até os dias de véspera do fim de sua vida consciente.
6. Losurdo desenhará letra a letra, traço a traço, esse perfil político inamovível. É verdade que o século XX inverteu esse perfil e fez de Nietzsche o campeão dos homens autônomos (o que é verdade apenas para os nobres, mas é falso para todos os demais!). Não é a arte, a música, a filosofia, a filologia o centro nervoso, o eixo axial da obra e da vida do profeta-poeta de Zaratustra - é a Política, conforme ele mesmo confessa, nas epígrafes restantes de Losurdo:
A política é agora o órgão de pensamento em sua totalidade.Menos que nunca podemos ver em Platão só um artista [...] Erramos quando consideramos Platão um representante do gênero artístico grego: enquanto essa capacidade foi uma das mais comuns, aquela espeficamente platônica, que é dialético-política, foi algo único.Não se poderia cometer erro maior do que supor que só a arte nos interessa: como se ela devesse equivaler a um fármaco ou um narcótico, com o qual se pudesse eliminar de si todas as outras misérias da existência.
7. Das duas uma: ou o século XX não aprendeu a ler, ou fez questão de desaprender - e a fuga da História pela porta das metáforas é uma boa forma de mentir para si... mas não apenas para si...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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