quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

(2011/097) Sobre "Deus" e o mal: comentários a um parágrafo da entrevista de Jürgen Moltmann


1. Traduzida para o português, a entrevista do teólogo alemão Jürgen Moltmann está no site do IHU, da Unisinos, e eu cheguei a ela pelo blog Numinosum. Dada esta manhã de marasmo da alma, um sono infernal e um cansaço de dois dias de 15 horas de trabalho, refestelado nessa cadeira que mais parece um cockpit de nave espacial, ponho-me a ler, assim, largado de qualquer preocupação que não decidir se volto pra cama (porque só trabalho à tarde e à noite, hoje), ou se fico aqui, contando as horas...

2. Aí - e eu não podia esperar coisa diferente - deparo-me com um argumento teológico. Transcrevo-o, para comentar:

3. "O senhor escreveu muito sobre a Cruz, que parece não mais interessar à Europa. O crucifixo pode voltar a ser eloquente?

A questão de Deus e da dor é o ponto de partida do moderno ateísmo europeu. Morre uma criança enquanto milhares de pessoas são mortas e inocentes caem pela mão terrorista. E onde está Deus? À antiga interrogação da teodicéia não há resposta: se Deus é bom e onipotente, por que o sofrimento? Se Deus quer o bem, mas não impede a dor, ele não é bom. A melhor justificação de Deus, diz quem o denigra, é de não existir. Mas, o ateísmo é uma resposta? Se Deus não existe, por que o sofrimento sobre a terra? Não nos serve um Deus a ser acusado? Esta discussão sempre me pareceu teórica".

4. Não vou me ater à alegada razão do ateísmo moderno. Duvido que seja essa a que se refere Moltmann - apostaria muito mais no fato de que, com as duas guerras, os cristãos europeus olharam-se no espelho, e expuseram suas cristianíssimas tripas à luz do dia, tudo isso somado ao influxo crítico e científico engengrado pelo Protestantismo, de modo que a nudez da alma e a plataforma moderna fizeram o "trabalho sujo". Assim como o tão propalado "desencantamento do mundo", também o ateísmo é um produto europeu (e protestante!). Mas vou deixar isso para outro dia.

5. Quero me concentrar nessa declaração: "E onde está Deus? À antiga interrogação da teodicéia não há resposta: se Deus é bom e onipotente, por que o sofrimento? Se Deus quer o bem, mas não impede a dor, ele não é bom. A melhor justificação de Deus, diz quem o denigra, é de não existir. Mas, o ateísmo é uma resposta? Se Deus não existe, por que o sofrimento sobre a terra? Não nos serve um Deus a ser acusado? Esta discussão sempre me pareceu teórica". Fique à vontade para a considerar profunda - a meus olhos, não é.

6. Primeiro, que não procede o que se chama, aí, de antiga teodicéia. Como assim, "antiga"? A declaração de que "Deus é bom" é, relativamente, muito nova. Está no NT, nas epístolas ditas joaninas ("Deus é amor"), posta nos lábios de Jesus, mas, a rigor, nasceu vinda dos persas, "apenas" quinhentos anos antes. Os judeus dos séculos VI e V, levando a sério a crítica persa da impossibilidade de o bem advir do mal, e o mal, do bem, eles, os persas, que tinham um deus bom, para o bem, e um deus mau, para o mal, os judeus transformaram o seu antigo Yahweh: de um deus que fazia tanto o que era bom quanto o que era mau (Is 45,7), Yahweh tornou-se um deus que só pode fazer o que é bom - digamos que ele foi adestrado para o bem...

7. Mas antes? Antes não. Os deuses não estavam submetidos às injunções morais e éticas: eles eram a imagem dos reis, que faziam o que lhes davam na telha. Da mesma forma como os reis não se sujeitam aos caprichos humanos, mas somente aos seus próprios - vejam o caso de Davi e Batseba, por exemplo! - os deuses, então, eram imaginados assim, tomados de liberdade intencional, ora fazendo o que era bom, ora fazendo o que era mau, cabendo aos homens apenas submeter-se. Eram tempos em que a Teologia não era feita no mundo das idéias, mas projetava-se, ao céu, desde as estruturas da terra. Hoje, ai!, uma República laica ainda chama "Deus" de rei!

8. A declaração de Moltmann é fruto de nossa catequese. Concordamos com os judeus, que o aprenderam com os persas, que do "bem" só pode vir o "bem", e fizemos de "Deus" um deus-apenas-bom. Uma vez que com isso não se resolveu o problema do mal, já que as dores e as desgraças continuaram a existir, e uma vez que não arrumamos um deus mau para culpar por isso, ainda que o diabo funcione, na prática, com o um deus mau, o fato é que, na Teologia "séria", a realidade de um Deus sozinho, sem parceiros, sem iguais, joga na nossa cara - e na dele! -, sem sursis, esse problema. Se ele é Deus, se ele é real, e se ele é bom - danou-se: o mal é uma pedra no sapato... Toma, "Deus", que o filho é teu...

9. E o que dizer do fato de Moltmann argumentar que, se não há Deus, como se explica o mal? De minha parte, considero essa declaração uma prova de absoluta ingenuidade, com o que da melhor forma possível consigo resolver a questão, já que estão disponíveis outras explicações. Fico com essa, programática. Ora, o mal não é um fenômeno em si. "Mal" é um conceito moral e ético. Fora dos conceitos morais e éticos, o que há são fenômenos brutos, naturais, amorais - como a morte, a deterioração dos organismos, das formas, os coitos aos milhões, o desperdício orgiástico da vida e da morte. Mas isso não é "mal", isso é natural, é amoral. E isso faz parte da vida, já que a criação e a destruição são as duas faces do mesmo fenômeno universal. Os sóis são máquinas de criar e descriar, de construir e de destruir...

10. A Teologia, todavia, fica enrolada em seus "mistérios" - em suas racionalizações superficiais e catequéticas. Moltmann não consegue sair do quadrado do dogma, da catequese, do mito de igreja, a despeito de as informações estarem disponíveis. Há muito que sabemos que o mal é um conceito humano, e que os fenômenos que o constituem consistem em processos naturais: por exemplo, ao mesmo tempo em que eu mato para comer, mato um boi, por exemplo, uma bactéria come minha carne, para o mesmo fim - por que a doença bacteriana é um mal, e minha refeição diária, não, ao ponto de eu agradecer a Deus por ela? Faça-me o favor...

11. Deixemos para outro dia as ações intencionais humanas. No fundo, não há diferença essencial entre elas e o que diariamente ocorre na natureza. A única diferença fundamental é a consciência - enquanto a natureza faz de modo inconsciente, nós fazemos de modo consciente. Mas, que nenhum teólogo nos ouça: quem criou mesmo a consciência?










OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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