1. "Eu" - quem é esse? A sua referência tende a remeter à alma, una, completa, simples, transcendente... A dessacralização, ou, digamos, a desmitologização da alma, não impede, todavia, a manutenção de uma perspectiva unitária sobre esse "eu" - seja cartesiana, "penso, logo existo", seja schopenhaueriana e seu "homem" pan-volitivo - de um lado, tudo é cognição, de outro, tudo é vontade... Mas nem a cognição, nem a vontade, nem qualquer outra "faculdade" desse "eu" pode sustentá-lo. Se me permitirem uma metáfora neotestamentária, uma referência, eu diria que "eu" é "multidão"...
2. O "eu" emerge das profundezas do cérebro: o "eu" espreme-se entre as circunvoluções desse órgão absurdamente complexo. Mas não emerge "dele". Emerge de uma série de estruturas que "nele" se articulam e o configuram. O "eu" não parece estar em nenhum lugar específico desse órgão, mas emerge de cada e de todo lugar que o constitui.
3. Além disso, "eu" é o resultado de atividades orgânicas, hormonais, químicas, elétricas. físicas. Qualquer disfunção em qualquer dessas estruturas constitutivas da condiçlão de emergência do "eu" e alguma coisa reverbara nesse "eu" - seja uma depressão, seja sua absoluta extinção.
4. Esse "eu" emerge, ainda, como uma tríade de dimensões de abrangência do real - afeição (hierarquização do real), volição (apropriação do real) e cognição (mapeamento do real). Se uma das dimensões sofre disfunção, a disfunção reverbera no "eu". O "eu" pisa sobre muitos fundamentos, depende de todos, de cada, e não se reduz a nenhum - isoladamente...
5. Todavia, o mais extraordinário é que esse "eu" não se reduz a um produto biológico desse órgão. O "eu" retroage sobre o órgão que faculta a sua emergência, e interfere em sua própria formação e construção - é o "eu", em sua fase infantiul, infanto-juvenil e juvenil o responsável pela fixação das sinapses - estruturas físico-químicas!, de sorte que o "eu" - imaterial - "molda" a própria matéria, recursivamente. São as vivências do "eu" as artesães da estrutura sináptica do cérebro do qual o "eu" emerge... Fantástico!
6. Não se pode reduzir o "eu" à biologia - mas não se pode - mais - pensar o "eu" de forma não-biologicamente articulada. E mais do que isso - a dicotomia corpo e alma, matéria e espírito, bem, chegamos à conclusão de que não faz o menor sentido. Enquanto durou, era fruto de uma grosseira incompreensão da vida humana, seja do cérebro, seja da psiquê. Hoje, quando perdura, das duas uma: constitui resquício, ainda, de ignorância, ou, no outro extremo, adesão cega a dogmas não apenas religiosos, mas, no final das contas, também filosóficos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
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