domingo, 23 de janeiro de 2011

(2011/037) Quando a vida é a própria religião


1. Considerando que: a) a vida é a verdadeira demandante de sentido - de significado e de direção; b) que a religião constitui uma esfera de sentido aplicado à vida; c) que a religião, enquanto esfera de sentido aplicado à vida, consiste em plataforma cultural, histórica, humana - resulta compreensível que, por força de um ato voluntarioso humano, a própria vida seja alçada à condição de seu próprio sentido: em lugar de buscar sentido - significado e direção - lá fora, lá, muito lá fora, pode-se, num ato ao mesmo tempo de coragem e maturidade, encontrar - pôr! - significado e sentido dentro da própria vida.

2. Penso que essa não seja outra a ação empreendida em consideráveis porções do Eclesiastes, um livro para poucos: comer o pão, beber o vinho, amar a mulher da sua juventude - o homem da sua juventude... Viver constitui, aí, o significado e a direção da vida. Trata-se, afinal, de uma forma de tornar religiosa a própria vida. Comer é o que é - comer, mas, sob o efeito do ato significativo da consciência humana, converte-se em rito, cujo sentido é ele mesmo, cujo fim é ele mesmo - viver é o culto sublime, comer é a liturgia das horas, beber, é o êxtase da existência...

3. Não é nova a percepção, logo se vê. Eclesiastes bem pode ser do século V ou IV, de modo que já se vão lá seus quase 2,5 mil anos - é tempo à beça!, e, desde então, já havia mecanismos de opção para além das estruturas sacerdotais, especialistas em pôr lá fora - mas sob seu controle! - o significado e a direção da vida [quem negará que os sacerdotes se apossaram do corpo e da alma de Jesus Cristo?]...

4. De certo modo, aquele profetismo de justiça e caridade enseja um exercício de contra-metafísica, no sentido em que encontra no cuidado caridoso dos mais necessitados o sentido da vida. Não deixa de ser uma alternativa - e penso que as tentativas contemporâneas de "missão integral" constituam uma queda de braço entre a velha religiosidade além-vida, doutrinária, sacerdotal, de submissão à autoridade pseudo-divina, e essa percepção "profética". Seriam melhor sucedidas se tivessem a coragem de pôr as coisas no seu devido lugar - de dizer as coisas com todas as letras [mas o Evangelho não pode dizer tudo que sabe! - ele é sumamente hipócrita], e se decidirem, de vez, entre o pobre e Deus - mas, enquanto ficam de pé ora sob um pé, ora sob outro, no fundo, trabalham para a doutrina, no fundo encarnam a alma sacerdotal, "nós, os portadores da luz!", eles dizem, com o "bônus" - sob sua ótica, claro! - de poderem se apresentar, na ágora, como diferentes - mas, cá entre nós, os diferentes-bem-iguais... Ave, Doutrina!

5. Não há como negociar. Ou o significado da vida está aqui, entre nós, ou retornaremos - sempre! - àquela encenação sacerdotal, disfarçada, que seja, de Evangelho...

6. Pelo menos há esperança - e, vejam só!, "bíblica" - de que a religião possa ser canalizada para a própria vida, em benefício da própria vida... Mas é preciso ser "sábio" para alcançar a corda que, em outros lugares, é controlada pelo sacerdote e, aqui e ali, também pelos profetas... Porque há profetas como Eliseu, é verdade - mas eu tenho medo é quando o Elias do "me-dá-primeiro-que-depois-te-dou" vem na frente... e sempre vem...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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