sábado, 22 de janeiro de 2011

(2011/031) Leitura crítica da Bíblia como defesa pessoal


1. Leio a Bíblia sob o regime indiciário - histórico-crítico e histórico-social. Para os não-entendidos, basta dizer que quero saber o que exatamente escreveu aqueles que escreveram esses textos, o que é que eles - e elas - queriam dizer, e disseram. Não me encantam nem agradam experiências pós-modernas de leitura, e me desinteresso por suas tentativas de legitimação. Mais uma vez, para os não-iniciados, explico que "experiências pós-modernas" de leitura são aquelas que dizem que qualquer leitura tem peso igual, que qualquer um pode ler do jeito que desejar, que há várias entradas e saídas num texto. Sim, é verdade - mas, com isso, se rasga a ligação entre leitor e escritor: usurpa-se (anti-eticamente?) a intencionalidade do texto, e faz-se com que ele diga o que a gente quer que ele diga.

2. Tentar ouvir o escritor é tarefa difícil, insegura e inglória. Fazer o texto dizer qualquer coisa, aí já é facílimo. Interessante é notar "doutorados" nesse tipo de leitura. Para quê? Um analfabeto pode ler assim - ele diz o que deseja que o texto diga, e está de bom tamanho. Qualquer tentativa de "controle" retórico de leituras que se servem da polissemia do texto constitui uma subreptícia forma de driblar o fato de que, se a regra é romper a represa, que ninguém se meta a se dizer dono das águas, porque não é. Ou o autor é dono delas, ou ninguém o é - razão pela qual me rio da tentativa da ortodoxia de dizer-se dona da verdade, quando até as amebas sabem que as doutrinas que esposam não pousam nos textos, mas na tradição, que os vergou...

3. Ora, se a tarefa a que me digo dedicar - ouvir o que os autores dos textos disseram - é inglória, difícil, insegura, porque me dedico a ela? Por que não embarco na chalana pós-moderna de dizer do texto o que me der na telha? Respondo por dois meios: a) se por um lado não é possível afirmar categoricamente a veracidade de uma interpretação indiciária, isto é, se não se pode ter certeza sobre se uma interpretação crítica de um texto equivale àquela grafada pelo autor, por outro lado é relativamente fácil derrubar as "falsas" interpretações; b) a leitura bíblica é, para mim, defesa pessoal, de modo que me interessa muito mais desmontar as interpretações políticas da Teologia - e da "estética" pós-moderna - do que garantir-me a leitura "verdadeira".

4. A Bíblia tornou-se instrumento de controle de consciências. Quanto mais no centro da Igreja, mais poder e controle ela exerce. Mas mesmo nas regiões mais afastadas daí, seu poder é atualizado. Usa-se a Bíblia para fazer com que pessoas façam aquilo que os operadores da Bíblia querem que façam - não importando o grau de honestidade deles, porque isso, aqui, é irrelevante. Os operadores da Bíblia querem me dizer, usando-a, o que eu devo fazer. Não posso tolerar isso. E, uma vez que se escondem atrás dela, não adianta apenas desmontá-los, é preciso desmontar o uso que fazem dela. Por isso digo que a leitura da Bíblia é, para mim, técnica de defesa pessoal. O sujeito vem pra cima de mim cheio de retóricas e interpretações das Escrituras, e eu desmonto tudo, pedaço a pedaço. Cabe a ele me chamar de herege - mas é só o que lhe resta. No mais, não tem poder sobre minha consciência, conquanto possa ter sobre os mecanismos de acesso ao pão... Mas é seu direito e pecado...

5. É suficiente, para isso, que seja relativamente fácil verificar interpretações erradas. 99% - deixemos 1% de tolerância, vai - das interpretações da Teologia e dos púlpitos carece de fundamentação crítica: são desejos doutrinários, são imposições eclesiásticas, "Tradição" e "Norma" - são artificiais, alegóricas, sem chão, sem base. Por isso não me atingem mais. Se bem que não posso deixar de registrar que, mesmo quando encontram alguma base, ainda têm de enfrentar a questão que me parece fundamental: e por que alguém que escreveu há três mil anos deve determinar o que eu devo ou não fazer? Mas, nesse caso, saímos do campo da interpretação em si. Essa é uma questão filosófica e ética - não menos relevante, é verdade...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

Elias Aguiar disse...

A melhor defesa é... o ataque?

Anônimo disse...

Continuo perguntando, e não é a pergunta que tenta colocar contra a parede - sei que seria vã -, mas a que pede, senão um chão, ao menos um pequeno bordão onde me apoiar, em que crer, afinal? Desde que comecei a ler seus textos, aqui e no Ouviroevento, vi minhas certezas se esvaírem por derradeiro - já começavam a esvoaçar um pouco antes -, o barco da minha vida/fé deixou o cais seguro onde se amarrava e lançou-se/fez-se lançar ao mar alto, e preciso ao menos de uma bússola, ou que o céu se descubra para que pelas estrelas eu não sucumba na cachoeira além do horizonte. Sinto saudades do banco da igreja e dos absolutos que ali tinha em minhas mãos, mas não os posso mais ter, viraram areia, e também não os quero mais, sei o destino da casa sobre a areia. Tenho filhos que quero criar "na presença do Senhor" mas não sei mais o que seria isso ou como fazê-lo. Já lancei-lhe o pedido de socorro em um ou dois e-mails e em um ou dois comentários em outros posts, e preciso - como preciso! - de respostas.
Abraços.

Debbie Seravat disse...

Prezado Luciano,
Compartilho do seu sentimento. Crer, afinal, em quê? Viver na auto-defesa é contra-atacar, porém, para este exercício, eu preciso de conhecimento. A minha preocupação se encontra aqui. O que passar de certo e seguro para nossos filhos? Ou a verdade e a certeza não existem?
Mais verdadeiros serão os contos de fada, as mitologias...
Abraços.

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