sábado, 22 de janeiro de 2011

(2011/030) Porque textos não têm vida própria


1. Textos carregam uma aura mágica - desde que foram inventados por nós, "humanos". Conta-se que, mandado a levar frutos de uma fazenda a outra, e, cuidando que disso ninguém daria conta, tendo comido alguns dos frutos, um escravo cuidou tratar-se de algum "espírito" o "bilhete" que o fazendeiro destinatário usou para saber que esse mesmo escravo comera dos frutos, de modo que se tomou de extremo pavor diante daquela magia desconhecida e poderosa... Parece que a magia do papel escrito continua a encantar e encanta ainda mais tanto mais se adentra numa aventada pós-modernidade (nesse caso, um correlato da pré-modernidade?).

2. Não, textos não falam (o primeiro fazendeiro escreveu "dez figos" no papel e enviou o bilhete ao segundo fazendeiro por meio do escravo que, tendo comido três figos, denunciou-se - nenhuma mágica, nenhum espírito - comunicação indireta, mediada). Textos são a impressão escrita de uma mensagem, seja qual for a sua função - comunicar, entreter, (des)informar, registrar, controlar. Ou uma pessoa - humana - grafa o texto e outra o lê, ou ele não se constitui em "texto". Não há textos naturais. A "Natureza" é analfabeta total, seja para ler, seja para escrever. São os homens e as mulheres, a espécie sapiens, os escrevedores e leitores. E só eles.

3. Todavia, no século XX, inventou-se de os textos serem coisas-em-si. Suspeito que tudo se deva a um enfrentamento (eventualmente bem-intencionado) entre aqueles que afirmam o sentido histórico de um texto e aqueles que a isso julgam "opressivo". Julga-se que se vai construir um mundo melhor quando não houver determinantes sociais... Quer-se a paz sem os imperativos. Denuncia-se o imperialismo da ciência, e, em lugar de tratar-se da questão da civilidade dos cientistas, descontrói-se a própria ciência. Parece-me pouco inteligente a coisa toda, mas, é o que se fez e faz.

4. Não há como negar que um texto, uma vez grafado por uma pessoa, assuma a sua polissemia constitutiva. Essa polissemia não é uma característica "humana" - antes, é uma característica do símbolo, e a linguagem, logo os textos, são simbólicos - precisam ser "abertos" pela "chave" certa. Uma vez que são multissemânticos, polissêmicos, uma vez que comportam vários sentidos, podem ser lidos assim, na sua pluralidade semântica constitutiva - mas isso tão-somente por conta da ruptura essencial entre a intencionalidade original que os grafou e a leitura com isso descompromissada. Possível? Sim, no campo estético e no político.

5. No estético, é o jogo de haurir do texto suas máximas possibilidades, todas certas. A Literatura o faz. No político, é o jogo de fazer com que todos aceitem, acriticamente, que esse ou aquele seja o modo adequado de entender esse ou aquele texto - por exemplo, pôr e exigir que seja posto Jesus em Isaías. Heuristicamente, nenhuma das duas leituras equivale à reconstrução metodológica do sentido original de uma mensagem.

6. Pouco provável, até, que a invenção dos textos, há milênios atrás, tenha se dado por força de sua polissemia. Penso que a polissemia dos textos foi descoberta quando de seu uso generalizado, quando se tenta dizer uma coisa e se entende outra. É a despeito de - e não graças a - essa característica polissêmica que a comunicação textual se dá, em cujo contexto a polissemia é obstáculo a ser necessariamente vencido. Isto é, se nossa intenção é, de fato, ouvir o que foi dito. Se estamos apenas interessados no "uso" do texto, então vale tudo, e o pecado desaparece, se assumimos que o círculo mágico que traçamos para, dentro dele, agir, é a estética ou a política. Em pesquisa, meus caros, ou falem as pessoas, ou silencie-se o mundo...

7. E arremato com uma questão ética - usar textos não é um modo de usar pessoas? E nesse caso, em via dupla: usa-se quem escreveu e usa-se para quem se lê. Não se trata de manipulação auto-legitimada? Não há, aí, uma profunda questão ética - acintosamente contornada? Esquiva-se da heurística, da arqueologia textual, por conta de um argumento "ético" - os exegetas querem impor sentidos determinantes -, e, no outro lado da retórica, cai-se na manipulação de mortos e de vivos... É preciso enfrentar a questão ética que os textos nos impõem.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Elias Aguiar disse...

E há quem diga
que os "ventos"
do "Espírito Santo"
não "inspiram"...

:)

Abraços!
Elias Aguiar

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