2. Não se trata do caso da obra de Mary Rute, posto que Mary tenta explicar para nós do que se está falando, afinal, quando se fala em "pós-modernidade" - logo, trata-se de uma tentativa - crítico-descritiva - de apresentação de um tema-objeto. Nos termos de minha colega: "dei-me conta de ter feito nesse estudo uma 'cartografia da subjetividade contemporânea'". Imagine-se uma cartografia onde o leste fica, digamos, a critério do observador (por favor, amigos, sem a "brincadeira" de que o meu leste é o oeste japonês: no milímetro que me separa de Bel, em nossa cama, há um espaço que é meu leste e o oeste dela).
3. Feita a distinção entre a obra em si e os postulados da própria "pós-modernidade", que Mary procura descrever, gostaria de deter-me sobre um parágrafo, que transcrevo:
Diante disso, podemos pensar que os mesmos elementos - abordados sob diferentes formas, diferentes enfoques e por teóricos diferentes - permitem conclusões por vezes distintas, o que, em princípio poderia nos confundir e desestimular. Contudo, eles nos ajudam a ampliar a nossa compreensão do tema, elaborar algumas conclusões e perceber que as mais diversas perspectivas se constituem exatamente nisto: não em verdades totais e absolutas. São verdades perspectivas, que evidenciam o que somos capazes de construir hoje. Neste sentido, trata-se de verdades limitadas, frágeis, temporárias, permanentemente criadas e recriadas, que possibilitam por isso mesmo, o enfrentamento de nossa própria constituição subjetiva e nos ajudam a construir estratégias de luta no processo de afirmação criativa da vida (Mary Rute Gomes Esparandio, Para Entender Pós-Modernidade, Sinodal, 2007, p. 47).
5. Para o dizer de modo bem claro, recorro, de novo, à Pragmática. Tomem-se os trêas elementos constitutivos das ações humanas - o sujeito, o mundo, os outros. Do ponto de vista do sujeito, há, portanto, três ações/relações humanas pragmaticamente possíveis - e só três. Ele e ele mesmo. Ele e os outros. Ele e o mundo. "Mundo" aí resume-se aos arranjos físicos da Tabela Periódica - longe das semânticas de João ("Deus amou o mundo") ou da Hermenêutica ("o homem é o animal que cria mundo"). Mundo, aí, é o Universo físico.
6. Ora, a minha relação - se honesta - com o mundo, dá-se por meio do critério crítico-heurístico de que é o mundo, e não minha subjetividade (conquanto ela aja sobre ele), o determinante da verdade. Quando alguém me ouve falar sobre o mundo - e essa fala se dá na dimensão de dizer ao outro o que o mundo é - cabe a ele não apenas ouvir as minhas palavras (já que o mundo não fala de si nem por si, somos nós que criamos as nossas falas sobre o mundo), mas, ainda mais necessariamente, checar a coisa dita no próprio mundo. Não vale, aí, absolutamente nada, a minha subjetividade. Malgrado sua operação metodológica insuperável, ela, aí, é estorno. É para além de minha subjetividade que a verdade do mundo se deve expor. Não é por meio da subjetividade humana que colocamos satélites em órbita, localizamos pontos específicos nas coordenadas planetárias e chegamos a localizar navios afundados - seja esse ponto específico o norte africano ou o sul europeu - o Egeu está naquela específica coordenada...
7. As relações sujeito - sjeito, aí, sim. O que eu digo de mim, em termos dessa relação estética, tanto faz. O que eu vejo numa obra de arte, sob o olhar estético, é de mim que vejo, de modo que, em eu dizendo que O Apanhador do Campo de Centeio me inspira depressão, alguém que queira argumentar comigo que a obra não causa depressão é, para ser direto, um parvo. Na relação estética, não vem ao caso o objeto-espelho: trata-se sempre de um encontro de mim comigo mesmo, de modo que os efeitos estéticos são, todos, subjetivos. Não há verdades nesse ambiente, apenas impressões e efeitos subjetivos - mas aqui, sim, poderíamos falar de "perspectivas", as quais, anote-se, porque voltarei ao tema, jamais podem ser conferidas no "objeto" (nem mesmo por meio de "outras" impressões subjetivas), porque estavam, já, de minha posse, constituindo-se o objeto como mero catalisador.
8. As relações do tipo sujeito - outros, isto é, relações políticas - são, ainda, de outro tipo, porque o que está em jogo aí, sempre, é o confronto entre (pelo menos) duas subjetividades-vontades. Logo, não se trata nem de "verdade", nem de "impressão", mas de jogo social, "agonia" de pôr-se face a face com o outro para a negociação - seja por quais meios, da mais "civilizada" democracia parlamentarista até a mais troglodita manifestação da força bruta. Nesse tipo de relação, as impressões podem pesar, dependendo do jogo político - "viver e deixar viver". Ou podem, simplesmente, não valer nada - o tipo de educação "vitoriana", por exemplo, de inculcação de valores tradicionais, normativos e coercitivos.
9. Voltemos, pois, à questão das "perspectivas", quando o assunto é o "conhecimento", a "verdade". Não é possível que afirmações contrárias, no mesmo nível das emergências físicas, sejam igualmente verdadeiras. É verdade que, se considerarmos níveis de realidade muito diferentes, por exemplo, o nível quântico, o nível "newtoniano", o nível astrofísico, possa haver - e há - afirmações que, num nível, comportam-se como negação de verdades de outro nível. Mas, no mesmo nível, o real não se contradiz a si mesmo. Nesse sentido, as verdade co-nivelares acerca do real podem ser perspectivísticas em termos metodológicos, mas, em termos estritos, não.
10. Talvez eu esteja tocando o tema da "compatibilidade". Pensemos as diversas disciplinas científicas como "persepctivas" sobre o real. Ora, nesse sentido, metodologicamente falando, o acesso ao real se dá, previamente, por percursos traçados por acordos de perspectiva. Todavia, uma verdade sociológica, digamos, não será, contudo, verdade alguma, se ela não o for, igualmente, uma verdade antropológica, ou psicológica, ou hermenêutica, ou histórica. Concordo plenamente com Jérôme H. Barkow, quando ele afirma: "eu coloco como exigência que toda explicação sociológica da ética seja compatível com as teses psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis ao mesmo tempo com as neurociências e com a biologia da evolução" (Jérôme H. Barkow, Règles de conduite et conduite de l1évolution. Em: Jean-Pierre Changeaus (org), Fondements naturels de l'étjique. Paris: Odile Jacob, 1993, p. 89, apud François Dosse, O Império do Sentido - a humanização das Ciências Humanas. EDUSC, 2003, p. 265). Ora, se cada ciência, se cada "verdade perspectiva", estiver fechada em si mesmo, que critério crítico-heurístico temos para nos certificar da validade das proposições ditas "verdadeiras"? A subjetividade pós-moderna?
11. Assumo, pois, dois postulados metodológicos - bem sabido, quando se trata de heurística, pesquisa crítico-investigativa aplicada ao "real" (em sentido amplo - ciências duras, moles e cognitivas). De um lado, o real é o crivo crítico do processo. É ele, não apenas o objeto, mas, aomesmo tepo, o critério objetivo crítico para a verificação das aplicações teórico-metodológicas. De outro lado, as abordagens disciplinares ao real, carregadas que são por sua dupla seccão - secção hermenêutico-subjetiva da consciência humana e secção teórico-metodológica disciplinar - devem-se mútuia satisfação, irrecorrivelmente, de modo que não tem valor a proposição de uma disciplina, qualquer quer seja ela, que não se subestabeleça no conjunto das demais abordagens crítico-heurísticas ao real.
12. No meu entender, portanto, "verdades perspectivas" não constitui uma expressão válida para o real, mas sobre um certo momento do jogo científico, constituindo não o estado essencial da "verdade", mas um, digamos, momento, do processo. O objetivo das ciências, das aproximações ao real, não é construir verdades perspectivas - é construir modelos teórico-metodológicos adequados, em todos os sentidos, ao real tal qual ele se manifesta. O sonho de uma teoria acerca do real não pode superar, é verdade, a necessidade eventualmente inexorável das abordagens parciais. Contudo, as abordagens parciais - as "verdades perspectivas" - não podem assumir o posto de norma da pesquisa.
13. O erro da "pós-modernidade", enquant tese, é não distinguir entre as operações heurísticas, estéticas e políticas. Fazendo de toda operação humana uma operação só, começa por perder a base de operação crítica e termina por traduzir em dissolução de toda a crítica as suas proposições - porque o modo de tornar óbvia a sua perspectiva é dar a todos que olhem o seu próprio modelo pós-moderno de olho - desde que, é claro, ninguém reclame da miopia adquirida... Quase chego a suspeitar de que a pós-modernidad pensa-se sob o modelo das discussões de diálogo interreligioso, se me faço entender... Cuida-se que se encontra a paz escondendo a guerra sobre o tapete...
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