sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

(2010/103) Uma questão sobre "pós-modernidade"


1. Minha amiga Mary Rute Gomes Esperandio teve publicado, na série Para Entender, da Sinodal, sua obra Para Entender Pós-modernidade. Adquiri-o da autora, quando nos conhecemos, acho que há dois anos, talvez três - não mais que isso. Os leitores de Peroratio sabem de meu, digamos, desconforto, em relação aos postulados de uma aventada presente era pós-moderna e, mais do que isso, de pronunciamentos que se fazem imaginar saídos de dentro da própria pós-modernidade, send assim, circunscrevendo-me - na verdade, a todos - em sua ótica de degelo crítico.

2. Não se trata do caso da obra de Mary Rute, posto que Mary tenta explicar para nós do que se está falando, afinal, quando se fala em "pós-modernidade" - logo, trata-se de uma tentativa - crítico-descritiva - de apresentação de um tema-objeto. Nos termos de minha colega: "dei-me conta de ter feito nesse estudo uma 'cartografia da subjetividade contemporânea'". Imagine-se uma cartografia onde o leste fica, digamos, a critério do observador (por favor, amigos, sem a "brincadeira" de que o meu leste é o oeste japonês: no milímetro que me separa de Bel, em nossa cama, há um espaço que é meu leste e o oeste dela).

3. Feita a distinção entre a obra em si e os postulados da própria "pós-modernidade", que Mary procura descrever, gostaria de deter-me sobre um parágrafo, que transcrevo:

Diante disso, podemos pensar que os mesmos elementos - abordados sob diferentes formas, diferentes enfoques e por teóricos diferentes - permitem conclusões por vezes distintas, o que, em princípio poderia nos confundir e desestimular. Contudo, eles nos ajudam a ampliar a nossa compreensão do tema, elaborar algumas conclusões e perceber que as mais diversas perspectivas se constituem exatamente nisto: não em verdades totais e absolutas. São verdades perspectivas, que evidenciam o que somos capazes de construir hoje. Neste sentido, trata-se de verdades limitadas, frágeis, temporárias, permanentemente criadas e recriadas, que possibilitam por isso mesmo, o enfrentamento de nossa própria constituição subjetiva e nos ajudam a construir estratégias de luta no processo de afirmação criativa da vida (Mary Rute Gomes Esparandio, Para Entender Pós-Modernidade, Sinodal, 2007, p. 47).

4. Talvez seja o modo como eu entro no parágrafo, minha prevenção psicológica contra o tema. Antecipado um provável diagnóstico, registro um certo desconforto diante do parágrafo. Talvez eu ainda o tenha ampliado para além de seu objetivo imediato, mas a "tese" pós-moderna de "verdades perspectivas" me parece ambígua. Ao menos, para ser mais comedido, insuficientemente explícita.

5. Para o dizer de modo bem claro, recorro, de novo, à Pragmática. Tomem-se os trêas elementos constitutivos das ações humanas - o sujeito, o mundo, os outros. Do ponto de vista do sujeito, há, portanto, três ações/relações humanas pragmaticamente possíveis - e só três. Ele e ele mesmo. Ele e os outros. Ele e o mundo. "Mundo" aí resume-se aos arranjos físicos da Tabela Periódica - longe das semânticas de João ("Deus amou o mundo") ou da Hermenêutica ("o homem é o animal que cria mundo"). Mundo, aí, é o Universo físico.

6. Ora, a minha relação - se honesta - com o mundo, dá-se por meio do critério crítico-heurístico de que é o mundo, e não minha subjetividade (conquanto ela aja sobre ele), o determinante da verdade. Quando alguém me ouve falar sobre o mundo - e essa fala se dá na dimensão de dizer ao outro o que o mundo é - cabe a ele não apenas ouvir as minhas palavras (já que o mundo não fala de si nem por si, somos nós que criamos as nossas falas sobre o mundo), mas, ainda mais necessariamente, checar a coisa dita no próprio mundo. Não vale, aí, absolutamente nada, a minha subjetividade. Malgrado sua operação metodológica insuperável, ela, aí, é estorno. É para além de minha subjetividade que a verdade do mundo se deve expor. Não é por meio da subjetividade humana que colocamos satélites em órbita, localizamos pontos específicos nas coordenadas planetárias e chegamos a localizar navios afundados - seja esse ponto específico o norte africano ou o sul europeu - o Egeu está naquela específica coordenada...

7. As relações sujeito - sjeito, aí, sim. O que eu digo de mim, em termos dessa relação estética, tanto faz. O que eu vejo numa obra de arte, sob o olhar estético, é de mim que vejo, de modo que, em eu dizendo que O Apanhador do Campo de Centeio me inspira depressão, alguém que queira argumentar comigo que a obra não causa depressão é, para ser direto, um parvo. Na relação estética, não vem ao caso o objeto-espelho: trata-se sempre de um encontro de mim comigo mesmo, de modo que os efeitos estéticos são, todos, subjetivos. Não há verdades nesse ambiente, apenas impressões e efeitos subjetivos - mas aqui, sim, poderíamos falar de "perspectivas", as quais, anote-se, porque voltarei ao tema, jamais podem ser conferidas no "objeto" (nem mesmo por meio de "outras" impressões subjetivas), porque estavam, já, de minha posse, constituindo-se o objeto como mero catalisador.

8. As relações do tipo sujeito - outros, isto é, relações políticas - são, ainda, de outro tipo, porque o que está em jogo aí, sempre, é o confronto entre (pelo menos) duas subjetividades-vontades. Logo, não se trata nem de "verdade", nem de "impressão", mas de jogo social, "agonia" de pôr-se face a face com o outro para a negociação - seja por quais meios, da mais "civilizada" democracia parlamentarista até a mais troglodita manifestação da força bruta. Nesse tipo de relação, as impressões podem pesar, dependendo do jogo político - "viver e deixar viver". Ou podem, simplesmente, não valer nada - o tipo de educação "vitoriana", por exemplo, de inculcação de valores tradicionais, normativos e coercitivos.

9. Voltemos, pois, à questão das "perspectivas", quando o assunto é o "conhecimento", a "verdade". Não é possível que afirmações contrárias, no mesmo nível das emergências físicas, sejam igualmente verdadeiras. É verdade que, se considerarmos níveis de realidade muito diferentes, por exemplo, o nível quântico, o nível "newtoniano", o nível astrofísico, possa haver - e há - afirmações que, num nível, comportam-se como negação de verdades de outro nível. Mas, no mesmo nível, o real não se contradiz a si mesmo. Nesse sentido, as verdade co-nivelares acerca do real podem ser perspectivísticas em termos metodológicos, mas, em termos estritos, não.

10. Talvez eu esteja tocando o tema da "compatibilidade". Pensemos as diversas disciplinas científicas como "persepctivas" sobre o real. Ora, nesse sentido, metodologicamente falando, o acesso ao real se dá, previamente, por percursos traçados por acordos de perspectiva. Todavia, uma verdade sociológica, digamos, não será, contudo, verdade alguma, se ela não o for, igualmente, uma verdade antropológica, ou psicológica, ou hermenêutica, ou histórica. Concordo plenamente com Jérôme H. Barkow, quando ele afirma: "eu coloco como exigência que toda explicação sociológica da ética seja compatível com as teses psicológicas da ética, e que estas sejam compatíveis ao mesmo tempo com as neurociências e com a biologia da evolução" (Jérôme H. Barkow, Règles de conduite et conduite de l1évolution. Em: Jean-Pierre Changeaus (org), Fondements naturels de l'étjique. Paris: Odile Jacob, 1993, p. 89, apud François Dosse, O Império do Sentido - a humanização das Ciências Humanas. EDUSC, 2003, p. 265). Ora, se cada ciência, se cada "verdade perspectiva", estiver fechada em si mesmo, que critério crítico-heurístico temos para nos certificar da validade das proposições ditas "verdadeiras"? A subjetividade pós-moderna?

11. Assumo, pois, dois postulados metodológicos - bem sabido, quando se trata de heurística, pesquisa crítico-investigativa aplicada ao "real" (em sentido amplo - ciências duras, moles e cognitivas). De um lado, o real é o crivo crítico do processo. É ele, não apenas o objeto, mas, aomesmo tepo, o critério objetivo crítico para a verificação das aplicações teórico-metodológicas. De outro lado, as abordagens disciplinares ao real, carregadas que são por sua dupla seccão - secção hermenêutico-subjetiva da consciência humana e secção teórico-metodológica disciplinar - devem-se mútuia satisfação, irrecorrivelmente, de modo que não tem valor a proposição de uma disciplina, qualquer quer seja ela, que não se subestabeleça no conjunto das demais abordagens crítico-heurísticas ao real.

12. No meu entender, portanto, "verdades perspectivas" não constitui uma expressão válida para o real, mas sobre um certo momento do jogo científico, constituindo não o estado essencial da "verdade", mas um, digamos, momento, do processo. O objetivo das ciências, das aproximações ao real, não é construir verdades perspectivas - é construir modelos teórico-metodológicos adequados, em todos os sentidos, ao real tal qual ele se manifesta. O sonho de uma teoria acerca do real não pode superar, é verdade, a necessidade eventualmente inexorável das abordagens parciais. Contudo, as abordagens parciais - as "verdades perspectivas" - não podem assumir o posto de norma da pesquisa.

13. O erro da "pós-modernidade", enquant tese, é não distinguir entre as operações heurísticas, estéticas e políticas. Fazendo de toda operação humana uma operação só, começa por perder a base de operação crítica e termina por traduzir em dissolução de toda a crítica as suas proposições - porque o modo de tornar óbvia a sua perspectiva é dar a todos que olhem o seu próprio modelo pós-moderno de olho - desde que, é claro, ninguém reclame da miopia adquirida... Quase chego a suspeitar de que a pós-modernidad pensa-se sob o modelo das discussões de diálogo interreligioso, se me faço entender... Cuida-se que se encontra a paz escondendo a guerra sobre o tapete...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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