terça-feira, 7 de julho de 2009

(2009/385) De rótulos e gavetas


1. Não há como ouvir as pessoas e simplesmente deixar as palavras entrarem pelos ouvidos como vento. Claro, estou falando de diálogos no campo do "conhecimento" - excluam-se a política e a estética. Falo dos diálogos no campo da pesquisa, da investigação, das teorias, das ciências, quaisquer que sejam (desde que verdadeiramente "científicas"). Não falo de "bate-papo". Não falo de "apresentações pró-curriculares" em Congressos (cada vez mais é nisso que se vão tornando tais "encontros"...). Falo de diálogos que carreguem proposições.

2. Pois bem, cada palavra deve ser ouvida com atenção, em si mesma, no conjunto sintático que formam, na "situação" ideológica em que se estruturam. É dizer que se deve ouvir o que o interlocutor está a dizer e, assim, compreender/entender o discurso, analisá-lo, criticá-lo, avaliá-lo. Se não é isso que se vai fazer, não vale nem a pena perder tempo ouvindo... ou falando.

3. Segue que é impossível não haver "rótulos" - aí. Cada discurso há de se inscever dentro de alguma tradição mais ou menos antiga, mais ou menos instalada na literatura, ou, na "melhor" ou na "pior" das hipóteses, constituir-e em uma nova tradição, ou na transformação de uma antiga teoria... Não importa. O que importa é que nenhum discurso se dá no vazio, e, de um jeito ou de outro, ele se enquadra em esquemas de classificação - do tipo: platonismo, aristotelismo, empirismo, positivismo, iluminismo, romantismo, cognitivismo, existencalismo etc.

4. Ja fui acusado - pelo Fanuel, salvo engano (isso em Peroratio) - de também classificar, rotular pessoas. Sim - e não. Rotulo discursos. E critico rotulações...

5. Contradição? Não, se me permitem explicar a diferença. Há dois modos de rotulação. Um, em que você ouve atentamente discursos de seu interlocutor, apreende-o, confronta-o com tradição e identifica a sua "trincheira". Uma vez que você identifica o trilho sobre o qual o trem do discurso que você ouve corre, tudo se faz claro. você é capaz até de antecipar o que vai ouvir.. agora... não falei? Mas isso não signifia que, porque você rotulou, você se fecha, põe o sujeito e o discurso dele na gaveta, e pronto. Não - rotular é necessário, porque é um jeito não-técnico de dizer que você identifica a ideologia de fundo que o sujeito usa - ou pela qual ele é usado...

6. O rótulo negativo é aquele que você põe na testa - na boca - do sujeito, e, uma vez lá posto, você não ouve mais o que ele diz, engavetado está ele para sempre.

7. Rotulo, invariavelmente, todos os discursos que ouço. Procuro destrinchar sua profundidade epistemológica - quando há! (em Telogia, cai-se invariavelmente em platonismo, mesmo um Tillich, mesmo um Bultmann, todos os demais, de Barth a Pannenberg [ainda que este se diga "histórico!]). E, ao contrário de engavetá-los, discuto, confronto, enfrento. Checo os argumentos, debato-os, bato com o martelo, critico, avalio, testo. O rótulo, aí, é meio. Não é fim. Não há gaveta aí - há megafone...

8. O pecado, o grosseiro, o indelicado, o improcedente - é a rotulação pela rotulação, aquela que, uma vez estabelecida, faz o sujeito desaparecer da face da terra. Conheço alguns interlocutores que fizeram assim comigo. É como se eu não existisse mais, como se eu não dissesse mais coisa alguma. É como se tivessem tomado um antídoto - seja contra mim, seja na defesa de seus discursos, que, impiedosamente, critico... Gaveta nele! É mais fácil assim...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

3 comentários:

Cristianismo Livre disse...

O pior é saber que nem mesmo a sério somos levados quando as "gavetas" se tornam uma constante em nossos discursos. Nossos analistas simplesmente se fecham, é a saída dos quelônios, as cabeças vão para os cascos para que, ilusóriamente, estejam protegidos. Mal sabem eles que o rabo e as patas ficaram para fora e estão aparentes para o ataque.

Fuga e recalque? talvez. Medo? Certamente.

Felipe Fanuel disse...

Osvaldo,

Lembrei-me do personagem da pequena peça de Oscar Wilde, The importance of being earnest. Ali a gente encontra o dramaturgo irlandês brincando com a arte de rotular pessoas. O fato de o protagonista ter duas identidades ("My name is Ernest in town and Jack in the country") revela o quanto o ser humano possui diferentes faces — rótulos criados por nós mesmos. A própria etimologia da palavra "pessoa" tem a ver com "máscara de teatro".

Com rótulos, no entanto, criamos também preconceitos. Por meio de sua sátira, Wilde ri, por exemplo, do rótulo dado aos fanceses como moralmente degenerados, ao passo que os alemães seriam venerados como racionais.

Tenho a sensação de que essa obra wildiana é um poço para quem tem sede de discutir rótulos, sobretudo se a preocupação for o reducionismo no qual corremos o risco de cair cada vez que adotamos a atitude mais adâmica de todas, a de nomear as coisas.

Espero que eu não esteja em sua "gaveta". (Longe de mim de "acusar" alguém. Por favor!)

Aquele abraço.

Peroratio disse...

Insistirei, Fanuel, e re-insistirei - enquanto achar que vale a pena: é demagogia fugir aos rótulos. Todos, absolutamente todos, sempre, absolutamente sempre, rotulamos. Se você não rotula, você não enquadra o não-rotulado em sua cosovisão. Ponto. Rotular é enquadrar na percepão. E, se não há pecepção, nã há nada...

O problema, inisto, re-insito, não é o rótulo. É o que você faz com a "coisa", com a "persona", depois de a rotular. Se eu pus rótulo em você? No sentido de ter de você uma idéia, sim, pus. Se criei uma gaveta para você, onde tanto você quanto seu rótulo amarelecerão eternamente? Não. Isso faço poucas vezes: sim, tenho algumas gavetas onde pus alguns a quem acho impossível a vida transformar, e, se acontecer o contrário, ficarei feliz em ter estado errado... Não, você não é, nem de longe, um caso desses.

Assim como é simplesmente tolo afirmar que a história não faz julgamentos (se não faz, não é história), também é tolo - e ainda mais - querer viver como borboletas, como que quase-pousando sobre as coisas, sem, de fato, fincar os pés nelas. Como você disse, é "adâmico" (nesse sntido do termo) a prática de dar nomes - Enuma elish leva-a até à criação, porque isso é, também, a criação. O triste é a mumificação do rotulado, a não checagem dos rótulos, a não testagem da primeira, da segunda, das terceiras impressões...

Ah, e claro, suspender um rótulo, provado equivocado, é, inexoravelmente, pôr outro...

Um abraço,

Osvaldo

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