quarta-feira, 20 de março de 2013

(2013/285) John Locke e como se pode fazer-se de cego - ainda sobre a relação entre evangélicos e gays

 1. John Locke é um dos pais do Liberalismo. Um dos pais do Empirismo. Teórico do Contrato Social. Não nos parece um bronco, um ignorantão - do que o mundo está cheio. É um homem refinado, culto. Digamos que tinha olhos na cara...

2. E, no entanto, não apenas defendia a escravidão - inclusive perpétua - como era acionista da Royal African Company, organização responsável pelo tráfico de escravos para as Colônias do Império Britânico.

3. O quê? Locke não sabia a dor que causava aos negros?, às negras?, aos filhos de negros?, às filhas de negras?

4. Não vem ao caso. O que vem ao caso é que o outro é destituído da capacidade de apelar ao meu coração, às minhas vísceras - não me comovo mais, torno-me de pedra, torno-me duro.

5. Para os meus, para os brancos, sou capaz de elaborar as mais sofisticadas regras de liberdade - com efeito, a sociedade moderna tem muito a dever a Locke. Todavia, o Liberalismo vale apenas para os "seus" - para pretos, não. E, uma vez que a ideologia faz morada no peito, na mente, não há mais nada que o grito do outro possa fazer - pelo contrário - como Lutero, diante da revolta dos camponeses, que ele aprova rechaçar com violência em nome de valores divinos, Locke seria capaz de autorizar a morte de escravos, baseado na teoria - que ele defendia - do poder absoluto do senhor sobre seu escravo...

6. A ideologia cega mesmo as mentes que, em outra área, têm as mais amplas aberturas...

7. É o caso do cristão.

8. Um lado de seu cérebro abriga valores de vida - para aqueles que ele considera dignos dela: os que ele aprova. Aí, você encontrará a defesa da vida, a compaixão, o amor - e não são valores fingidos - são reais.

9. Todavia, essa mesma mente tem classificado certos indivíduos, a partir de marcas que os caracterizam, como alijados daquela abertura de compaixão: como os pretos de Locke, os gays do cristão estão fora da mesa. Esse tipo de operação psicológico-política promove as condições necessárias para que a compaixão que há na mente cristã opere indistintamente: de modo que ela não consegue atingir quem a ideologia não quer que ela atinja.

10. Hitler amava seu cão, um pastor alemão. Teria matado seu amigo, pouco antes de se suicidar. Não se continha em manifestações de afeto, públicas, quando se tratava do cão. Fazia-lhe carinhos. Locke amava profundamente os homens - a quem ele assim considerava - a ponto de ter contribuído maximamente para políticas de emancipação política - e, todavia, preservava seus investimentos considerando que pretos escravos são exceções à regra geral. Da mesma forma, cristãos amam Jesus, amam seus irmãos, amam o mundo (tenho dúvidas aqui) - mas conseguem dirigir contra gays toda sorte de ódio e reprovação.

11. Trata-se de uma estratégia psicológica. Fingir que não vê. Fazer de conta que as justificativas que damos convencem. Não, não convencem. Mas faz-se de conta que sim, procurando "iguais" com os quais possamos mutuamente disfarçar as próprias mentiras em palavras de ordem. Mentir para si, enganar-se, disfarçar a miséria da alma.

12. Locke, por dinheiro.

13. E você?





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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