sexta-feira, 23 de novembro de 2012

(2012/804) Quando a espiritualidade traduz uma falta insuportável

1. Você não me deveria levar tão a sério. Todavia, deixe-me dizer uma coisa, uma só - eu acho que grande parte da neurose de Deus, do desespero de se rasgar em liturgias super-emocionadas, em se desabar em transes de confissões a Deus atende a uma falta humana profunda... 

2. Eu compreendo, mas interpreto - estarei errado? - como a manifestação angustiada de quem está a afogar-se em si mesmo, e não tem com quem se abrir, não tem a quem contar seus segredos, a quem olhar nos olhos e despir-se, alma e corpo, avesso e inteiro... 

3. Eu compreendo... 

4. Mas as coisas ficam calmas, quando você tem alguém. 

5. Seu coração encontra paz e porto, se você tem alguém. 

6. Sua alma repousa - como um rouxinol no galho, ela descansa. 

7. Não há desespero, ainda que lágrimas. Não há sofrimento, ainda que dor. 

8. Porque você tem alguém... 

9. Mas ter alguém é mais do que ter uma pessoa ao lado. Ter alguém é ter estado dentro dela e é ter ela entrado dentro de você... 

10. Fisicamente, você fala? 

11. Sim, também fisicamente, mas muito mais do que isso - é espiritualmente, psicologicamente, todas as eras, todos os séculos, ali, naquele olhar, naquela cumplicidade... 

12. Você não tem mais segredos. 

13. Você lhe contou tudo. Tudo. Seus horrores. Seu tremores noturnos. Seus fantasmas.

14. Se à porta se bate, não há fantasmas. 

15. Encontra-se aí a paz por todos os séculos buscada - ela não está em algum lugar: ela está aqui, agora, ela e eu, nós dois, cúmplices, amantes, amigos. 

16. Deus, então, não se torna uma desesperação, uma alternativa, um substituto... 

17. Deus converte-se em outra coisa. 

18. Numa presença imaterial e inominada, que não se pode apontar, um pressentimento, um arrepio na nuca... 

19. Por isso, quando contemplo o espetáculo do desespero religioso e místico, litúrgico e espiritual da moda, pergunto-me quanta ausência de si e do amor há ali - barulho demais, fuga demais, desespero demais... Ali está a falta. 

20. Porque não se trata de sexo, não se trata de papel passado, não se trata de aliança, não se trata de casamento...

21. Se trata de ser tão profundamente unido ao outro que nada mais se faz urgente - e Deus se faz infinito...





OSVALDO LUIZ RIBEIRO

Um comentário:

Cleinton disse...

Se Sartre dizia que "o inferno é o outro", você diz que "o outro é o céu". O ser humano, como sabemos, é um ser gregário; precisa dos outros. Todavia, sua fala parece expressar a necessidade de "apenas UM outro", o que pode fazer preterir a vida em comunidades de fé e auxílio. Talvez o grande problema humano seja o medo. Se minha tese estiver correta, é melhor ter mais do que "apenas um", pois, sendo apenas um, se se perde este único, a vida perde o sentido muito rapidamente e o suicídio acaba por ser forte alternativa. Deste modo, a vida comunitária religiosa, assim como a secular, pois várias pessoas buscam redutos comunitários que as livrem da anomia, é mais do que uma carência de quem não tem "o um" ou "a uma". Assim, entendo como o verdadeiro sentido da vida, a questão do outro. Por medo de ter o suicídio como possibilidade, busco ter mais do que o outro, expresso em "uma", abrindo-me para os outros, que, cristicamente compartilham comigo a máxima de doar-me a eles, como consigo doar-me a mim mesmo.

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