domingo, 23 de setembro de 2012

(2012/694) De quando fazemos Deus ser a imagem de nossos interesses


1. Vou lidar aqui com a tradição do Antigo Testamento. Parte do que vou dizer tem sustentação apenas nesse tradição, porque os fatos históricos não se deram da forma como a tradição os conta. Todavia, como o que me interessa é justamente a forma como os "judeus" (uma parte deles) se viram e contaram a sua tradição (de forma sempre política, como programa de controle social), se há divergência entre as coisas tais quais se deram e a tradição não faz a menor diferença...

2. Pense-se o povo no Egito. Os textos pretendem que os tomemos em situação de escravidão, presos pelo Faraó mau. Escravos e sofridos, o povo clama a Deus, que os ouve. Deus, então, sendo quem aí se diz ser, ouve-os. E fica de todo comovido com o clamor do povo, que sofre, escravo que é, diz-se, na mão do Faraó mau. Mau, porque escraviza os outros, prende-os em grilhões e os faz sofrer.

3. Pois Deus não tolera isso. Pelo menos não "ainda", não aqui. O que ele faz? Desce e vem estar com o povo. Liberta-o e leva-o para uma casa nova. É verdade que, ao fazê-lo, Deus usa de matar muita gente, mas não vou aqui tratar disso. Quero apenas apresentar o perfil desse Deus - ele é libertador: a simples visão de um escravo o comove e, comovido, ele age em favor deles...

4. Veja bem - isso é como a tradição - "essa" - o "pinta". No fundo, ontem e hoje, são sempre tradições, e não se vá além delas...

5. Mas, então, eis que as tradições mudam. Em casa, agora, Israel é um povo soberano, com rei e castelo, templo e olivais - a vida lhe vai bem...

6. E tanto que, vejam vocês, o rei de Israel/Judá tem seus prisioneiros. O Sl 2 é bem essa história. O rei de Jerusalém tem reis sob seu domínio (e isso só pode ser tradição, naturalmente), e não são poucos. Muitos, eles querem libertar-se, romper seus grilhões. Israel, que era escravo, agora é rei, e o rei de Jerusalém é o "novo" Faraó mau...

7. Como o antigo Faraó mau, o novo Faraó mau não quer deixar seus escravos irem embora - ele os retém com correntes. Não, não vão embora!

8. E Deus, o libertador de escravos - como ele se comportará? Libertará os escravos?

9. Não - ele não apenas os liberta, como ainda por cima zomba deles...

10. Mudou. Não é mais o mesmo. Não é mais libertador de escravos. Pelo contrário, é escravagista. E, poderoso, aconselha aos novos escravos que se submetam, ou morrerão pelas botas de seu filho, o rei de Jerusalém, filho de Deus...

11. Eis a tradição: Deus é pintado da forma como interessa a quem o pinta. O pintor é escravo?, Deus é libertador de escravos... O pintor é senhor de engenho, rei, escravocrata?, Deus é escravocrata e senhor de engenho.

12. Sempre será assim - sempre. O Deus dos profetas é profético. O Deus dos sábios é sapiencial. O Deus dos sacerdotes é sacerdotal. Deus e as manias de Deus. Deus e as vontades de Deus, suas normas. 

13. Não escrevi esse texto para conclamar as pessoas a terem de Deus a "ideia correta", porque não há uma "ideia correta" sobre Deus, já que sempre - sem exceção - todos nós sempre pintaremos Deus do nosso jeito. Você pode achar, jurar e sentir que "sabe" - mas não sabe, não: o que pensa de Deus é pura tradição, que você ama, é verdade, mas não é nada mais do que isso.

14. E, uma vez que não há como sair dessa situação - quero dizer: pensar em Deus é sempre inventar um modo de pensar nele, sempre a partir de nossos gostos, sempre projetando-nos nele -, restaria darmo-nos conta de que é preciso pensar "Deus" de tal forma que seja bom para todos os homens, mulheres e crianças do planeta: construir juntos uma ideia tão plural que já não haja mais ingenuidade em nenhum de nós, a tentar enganar-se e aos outros com a ideia de um "Deus" acima da construção histórica.




OSVALDO LUIZ RIBEIRO

6 comentários:

Leonardo_llb disse...

Não concordo com a questão de que temos que construir a ideia de Deus. Não é necessário, como Ele é perfeito, Ele já está construído. As únicas coisas que são construídas, ao logo dos anos, são as culturas do homem. Sim, sempre a imagem de Deus é de quem o vê, e, na maioria das vezes, nós projetamos uma imagem dele que atende aos nossos esquemas. Porém, só porque isso acontece, não significa que seja algo bom e certo. Como já disse: "Deus existe, já está pronto, não precisamos ficar construindo ele a partir de nada". Então o que nos resta? Nos resta aceitar o que Ele é, aceitar Ele, entender o que Ele quer de nós. Jesus deixa claro que há apenas um caminho certo, não vários caminhos certos. Jesus disse que é a VERDADE e não AS VERDADES. Se há diferentes formas, na bíblia, onde Deus é tratado, se dá devido a Ele ter ações diferentes em determinadas situações. Então, basta compreendermos, aceitarmos, e tirar ensinamentos, não cabe a nós ficar "decidindo" o que Deus é ou não é. Todo modo de alargar o caminho de que Jesus diz ser o certo, é perigoso. Então, Deus existe, é perfeito, não é inconstante, como nós, logo, não existem várias caras de Deus, mas sim. O problema é que nós somos egoístas, vaidosos.

Leonardo Lucas Britto
Porto Velho - RO

leonardo_britto7@hotmail.com

Peroratio disse...

Lamento dizer, Leonardo, mas a ideia de Deus é um construto social, sempre inacabado: era uma, no AT, outra, no NT, outra, na Idade Média, outra, hoje, e será outra, amanhã.

Compreender isso é fundamental para por-se acima da religião e não se constituir uma vítima dela - o homem não foi feito para a religião: a religião é que foi feita para o homem...

Leonardo_llb disse...

A questão da construção cultural de Deus eu entendo. Todos os povos possuem uma forma de ver, crer e entender a Deus e aos deuses. Segundo9 Burke (2008) a cultura permite ao homem desenvolver uma série de ralações com ou outros homens e com o meio, permeando no campo das atitudes, mentalidades, expressões, simbolizações. Mas, conciliando os conhecimentos acadêmicos com os bíblicos, encontro em Deus de Israel uma inclinação para que não haja uma generalização dEle. Não digo que o povo dEle nunca o viu de uma forma deturpada, ou guiada por um tipo de cultura, mas, digo que Deus sempre se colocar como um Ser ímpar,Ele está acima de todos, é perfeito, sabe tudo. Deus não da amrgem para a comparação dEle com nenhum outro tipo de Ser, nem objeto. Ele exige uma adoração singular.
Admitir que temos que construir uma imagem dEle, é perigoso, ao meu ver. Pois, se assim o compreendermos, então poderemos crer que diferentes religiões podem nos levar ao mesmo Deus. É errado. A religião foi feita para o homem, mas eu pergunto, quem fez a religião? não foi Deus que criou a Religião, foi o homem. Quando Deus criou tudo, só existia Ele como Ser para adoração. Após o pecado, o homem encontrou outras fontes para adorar, então, acabou-se criando a religião. Se o bem só existe porque há o mal para contrapor, a luz só tem destaquem se há trevas, a religião só existe porque há mais de uma entidade para ser adorada.
Deus criou o homem para adorá-lo. Deus estipulou a forma como Ele é adorado. Assim, não vejo que resta ao homem ficar criando e recriando o que Deus criou, estipulou e disse.
contudo, compreendo que ao longo da história o homem sempre lê Deus de acordo com seus preconceitos e a sua cultura, no entanto, não vejo nisso uma atitude correta, pois, nosso dever é negar a si mesmo a cada dia, assim como jesus nos ensina.

Peroratio disse...

Leonardo, não apenas o conteúdo, mas a própria forma da ideia de Deus, seja do deus de Israel, sejam dos deuses da Índia, são culturais.

Não se pode, com u'a mão, abraçar as Ciências Humanas, para entender o fenômeno e, com a outra, driblá-lo: se admitimos que o fenômeno de elaboração, quer da ideia, quer dos conteúdos de Deus são culturais, não há mais nada a conceber que não seja exclusivamente humano.

Salvo, naturalmente, o Incognoscível: imaginar que, eventualmente, há Algo lá, inacessível, desconhecido - mas, depois de o dizer Inacessível, fazer de conta que ele equivale à velha ideia do Deus de Israel é abandonar toda a seriedade da reflexão...

Leonardo_llb disse...

Sim, a construção da ideia de Deus é cultural, porém, Deus não é cultural.

Com as ciências, é possível ter, ou tentar, ter ideia de uma parcela da "realidade". Mas, não da para encaixar Deus em teorias humanas, Deus é tão complexo, que nossas mentes, limitadas, não podem compreendê-lo por completo. Logo, uma teoria criada por nós, que nem serve para abarcar tudo o que conhecemos, não terá chance de englobar um Ser que é o Início e o Fim.

Através da História e da Antropologia, consigo perceber, ou tentar perceber, as diferentes formas do homem se relacionar com Deus, de compreender e ver Ele. Porém, isso não quer dizer que Deus se limita às visões de mundo limitadas dos homens.

Quando leio Romanos 12:2 vejo que o "mundo" que nós não devemos nos conformar pode significar várias coisas. Entre elas está o de permitir que a nossa cultura deturpe a forma que Deus é. Devemos lutar para não sermos, cegamente, influenciados por nossa cultura e pelo "sistema", na forma que vemos, entendemos e tratamos ao nosso Deus.

Se nós admitirmos que o Deus verdadeiro é uma construção, e dependendo da sociedade Ele terá características diferentes, então vejo uma contradição. No Olimpo Zeus pegava várias mulheres, os deuses do Olimpo eram todos entregues aos prazeres sexuais. Porém, ao lermos a bíblia nós vemos Deus abominar isso, é completamente o oposto. Frente a isso faço o que? Ou acredito que Deus não existe e é, apenas, o ópio do povo, assim como a religião; Deus existe e uma das descrições dEle está errada.

Digo isso porque acredito em um só Deus. Creio que só há um caminho certo para se chegar a Ele, e que só há uma visão certa sobre Ele. As outras visões são deturpações, erros, vaidade, etc. Jesus disse que é a verdade, e não as VERDADES. Jesus disse que só há um caminho para se alcançar a salvação, e esse caminho é estreito. Contudo, respeito quem pensa diferente e acho que os cristãos devem respeitar que não é. No entanto, não posso concordar com uma visão, que considero, errada de Deus. O que entendo de Deus é o que eu leio na bíblia e consigo apreender, porém, tenho plena consciência de que a minha cultura interfere em minha concepção do Divino. Contudo, tento sempre, o máximo que posso, me esquivar dos meus "sistemas", deixar o Espírito Santo me ensinar e entender o que Deus é e quer. Pode parecer algo impossível um homem se despir de sua cultura, mas, a ideia de um homem que ressuscitou também é loucura em vários lugares. Mas, é algo muito complexo, pois, mesmo que eu me livre ao máximo da minha cultura, ainda continuarei a usá-la para ler e entender a bíblia, pois a linguagem é cultura.

Leio sempre seus artigos, acho suas ideias muito boas. Peço perdão por não citar os autores. Mas é porque achei o que você disse sobre construirmos uma ideia de Deus. Não temos que construir ideia de Deus, Ele já está pronto e acabado, as construções sobre Ele resultam em erros. Temos que conhecê-lo, do modo que Ele é, e não do modo que queremos que Ele seja. A vontade que é BOA, PERFEITA e AGRADÁVEL é a dEle e não a nossa.

Peroratio disse...

Leonardo, cada um de nós tem seu limite. Você chegou ao seu. O meu limite é bem mais lá na frente, de modo que, daqui em diante, vamos ficar falando sem sermos ouvidos - eu não ouço, você não ouve...

Para mim, não apenas o conteúdo da ideia de Deus é cultural - a própria ideia de Deus o é.

Felicidades.

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