domingo, 22 de janeiro de 2012

(2012/062) Assim em cima como embaixo - o efeito inercial do hermetismo na cultura contemporânea



1. Os antigos imaginaram um outro mundo, igual ao nosso, acima das nuvens. Os deuses foram imaginados como habitando aquele lugar e ele foi, então, imaginado como uma cópia deste mundo humano. Os deuses têm casas - palácios, já que são os "reis". Casam-se. Têm filhos. Eventualmente, enfraquecem-se e são substituídos pelos deuses novos e mais fortes - da mesma forma como acontece na corte...

2. Esse sistema inegavelmente mítico converteu-se num sistema mais sofisticado - a abstração hermética e mágica de que as coisas aqui embaixo são como as coisas lá em cima: o cosmo de baixo é uma réplica do cosmo de cima. 

3. A história da ciência não deixa de ser a história da destruição desse modelo hermético - hoje, sabemos que o que está "lá em cima" não tem nenhuma relação com o que está aqui embaixo. O texto de 2 Pd 3,5 - Pedro (mas é muito provável que não tenha sido sequer ele o escritor da carta) chamando de ignorantes àqueles que "esqueciam" que lá em cima estavam instaladas as águas originais, cosmogônicas, desde onde a terra - de que terra ele falava? - havia sido tirada e onde ainda permanecia - é um episódio-limite: amanhã se descobriu que não há água lá em cima, apenas a imensidão imensa e sem fim...

4. As concepções mitológicas foram sendo pouco a pouco tornadas inoportunas. De um lado, a Teologia, considerando-se cada vez mais "racional". De outro, a Ciência, separando-se da Teologia, e tratando-se como visão adequada do "real". Todavia, a mitologia permaneceu na cultura - nas artes, na política, na literatura, na religião e, mesmo, na ciência, a despeito do que disso diziam e dizem teólogos e cientistas.

5. E é nesse ponto que desejo entrar: parece-me que o modelo de aplicar ao "lá de cima" as modalidades do "cá debaixo" permaneceram operando nos subterrâneos. No caso da Física Quântica, dois passos tornam-se muito suspeitos de mitologia hermética - primeiro, a interpretação subjetiva dos fenômenos "observados" no nível sub-atômico das partículas e, segundo, a aplicação direta das interpretações subjetivas ao nível atômico, físico e antropológico.

6. As partículas são indeterminadas? O "real" inteiro passa a sê-lo. As partículas são indiferenciadas? A identidade das coisas, no nível atômico e acima, acompanham a tese da indiferenciação. Não se pode pegar a partícula pela velocidade e pelo local ao mesmo tempo? O mesmo princípio é aplicado ao mundo supra-atômico... Aplica-se ao nosso mundo tudo aquilo que aparece no mundo sub-atômico, como se, no nosso nível de existência, valessem as leis de lá.

7. Para mim, o que está acontecendo é a sobrevivência daquele princípio hermético-mítico: no alto como embaixo. Está-se operando o sistema com a mesma injunção psicológico-mágica. Estamos assentados sobre a mesma pedra - ainda...

8. Vejo ocorrer o mesmo fenômeno que ocorreu com a questão do tempo. Desde Newton, alquimista, físico, teólogo - e teólogo cristão, para quem Deus é eterno e escapa ao tempo -, o tempo é uma ilusão desprezível, porque, se a eternidade e Deus o são, logo a verdade (e a física é a verdade!) igualmente o é.

9. A despeito de o tempo rasgar a carne da gente, o olhar newtoniano - a própria Física! - tratou o tempo como ilusão, o abstrato teológico valendo mais do que o indiscutível material. O tempo, Pai-Mãe de toda a matéria, tornou-se um traque de traça, um nada, uma idiossincrasia do "pecado". Foi preciso esperar até a década de 50/60 no século passado para enterrar-se essa concepção (Prigogine) - conquanto ainda opere em muita consciência.

10. No caso do tempo, a teologia perverteu o juízo científico, felizmente, recuperado nesse aspecto. Mas julgo que ainda não se recuperou esse juízo totalmente, e ainda o vejo operar justamente ali, na ação próximo-teológica, próximo-mágica, flagrantemente hermética de aplicar ao nosso nível - supra-atômico - percepções subjetivo-interpretativas de fenômenos complexos do mundo infra-atômico.

11. Qual a razão? Hermetismo inercial. Salvo, claro, melhor juízo.



OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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