quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

(2011/101) Sem contexto, não há sentido - Morin e a sede hermenêutica do sentido de textos


1. Eu sei que é uma questão extremamente constrangedora e delicada, mas eu confesso - e vai ver o problema é meu - uma dificuldade enorme para descartar o "autor" de um texto. É óbvio - deveria ser - que se pode ler um texto, descartando-se seu "autor" - todos os modelos baseados no "leitor" são hipônimos em relação a essa categoria, a chamada e festejada "morte do autor". Todavia, independentemente dessa onda animada, permanece o fato incontornável de que o texto escrito marcou e marca um pronunciamento histórico, uma projeção de consciência, resguardadas aí as experiências lúdicas programáticas - poesia aleatória, digamos assim...

2. Outro dia meu colega Zabatiero e eu discutíamos sobre isso. Agora, estamos perto um do outro. Mas as discussões permanecem. Parece que convergimos para uma posição próxima - desconsideramos a leitura programática do tipo "intentio lectoris", mas, quando se trata da alternativa, arranhamos os discursos. Zabatiero entende que é possível descartar o autor, e que isso não faria nenhuma diferença... Bem, se estamos falando de entender o que o autor disse (Zabatiero faz uma distinção entre o que o autor disse e o que ele pode ter querido dizer), não vejo como se pode descartar justamente quem disse.

3. Sirvo-me de Morin, e não vou nem a uma obra fundamental. Sirvo-me antes, de uma obra de divulgação pedagógica: Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Na p. 36, se pode ler o seguinte: "o conhecimento das informações ou dos dados isolados é insuficiente. É preciso situar as informações e dos dados em seu contexto para que adquiram sentido. Para ter sentido, a palavra necessita do texto, que é o próprio contexto, e o texto necessita do contexto no qual se enuncia". Ora, e qual é o contexto no qual o texto se enuncia?

4. Parece que está mais ou menos clara a necessidade de se porem as palavras de um texto em seu contexto - (n)esse mesmo texto. Isoladas, as palavras não apenas não têm sentido próprio - mas, pior, podem ser vergadas pelo leitor para que assumam sentido de interesse do próprio leitor. E dou dois exemplos:

5. "Terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e terei compaixão de quem eu tiver compaixão"(Ex 33,18-23). Isolada de seu contexto, a declaração soaria "calvinista" aos ouvidos do leitor. "Deus tem misericórdia de quem ele quiser...". Mas no contexto, é outra coisa que se diz. Nega-se a um sujeito anônimo (nas traduções correntes, "Moisés" [que, todavia, não consta do texto hebraico]) o direito de ele decidir por si mesmo quem tem direito ou não a ter acesso a Yahweh, reinvindicando-se para o próprio Yahweh o poder de permitir quem quer que ele queira. O modelo não é Calvino, mas o Cristo que andava com a gentalha...

6. Is 4,2-6 - a maior concentração de termos próprios e exclusivos do Templo de Jerusalém na Bíblia Hebraica: cinco versos e mais de 30 termos! Quem terá escrito? Isolada, a estatísta aponta para o templo: no contexto, alguém que toma as palavras do Templo para destruir seu sentido hierocrático - um caso raro de reinscrição transgressiva, e o texto mais "protestante" do Antigo Testamento - talvez de todas as Escrituras.

7. Uma vez que o contexto da palavra no texto é o próprio texto, o contexto de enunciação do texto deve ser seu contexto histórico de enunciação - lá e então, quando ele se fez enunciar. Se eu não for capaz de reconstruir aquele contexto - que está perdido, a única coisa que poderei fazer é projetar possíveis sentidos numa rede potencial de sentidos. O que é plenamente viável - já que qualquer leitura é possível. Todavia, se o que eu quero é entender o que foi dito, e não me haurir das possibilidades de leitura da plástica narrativa, não vejo como descartar o autor. Thanatos, não!, Hypnos! O autor não está morto, mas dorme. É como Lázaro - e há que haver um Cristo em cada leitor, se o que se deseja é que o sentido "original" da fala do autor venha à tona, ou melhor, saia da caverna.

8. Insiste-se, todavia, em que o próprio texto permite a leitura... Aqui, confesso, reside o desafio. Ora, o contexto da palavra é o texto, isto está claro: mas poderia ser o contexto do texto ele próprio, o texto? Enquanto obra humana, o seu nicho de sentido, o seu locus hermenêutico, a sua chave de compreensão, não é o que a pessoa que o escreveu disse? Como posso certificar-me do que está escrito - em relação ao que se escreveu - se eu não recorrer a quem escreveu? Você entra num círculo vicioso, Osvaldo - texto, "autor reconstruído", texto... Sim, é verdade: mas o círculo sumiu no argumento texto - "texto" - texto? Ora, dar de ombro diante da questão não é resolvê-la - corre-se o risco de voluntarismo epistemológico, não? Sim, dos dois lados...

9. Sei, contudo, onde está o meu desafio - encontrar a questão, o ponto, o argumento que, definitivamente, encerraria a questão. E penso, a princípio, que o ponto passa justamente por esse que Morin menciona: o contexto de enunciação. Ler não é gerar uma experiência de leitura. Quando o é, trata-se de poesia, de "literatura", de arte, de estética. Nunca é o próprio texto, contudo, a produzi-lo, mas é, sempre, a consciência poética do leitor a agente de seleção da polissemia, o tecedor da monossemia seletiva aplicada sobre a polissemia potencial da obra.

10. Mas ler enquanto busca do sentido original do que o autor disse não tem nenhuma relação com isso. Não é arte, não é estética, não é literatura - é trabalho, é garimpo, é escavação, é arqueologia, é história - é heurística. Trabalho que se impõe a reconstruir o contexto de enunciação desse texto - o enunciador (autor), o "evento" de enunciação, os destinatários da enunciação, as razões de tudo isso, os conteúdos histórico-culturais plasmados nos termos empregados. Sem esse esforço, de tal forma que se reconfigure aquele mesmo momento histórico, penso ser impossível entender o que o texto porta do sentido original. Sentido original esse que está ali, perdido dentro da rede de sentidos possíveis, e que apenas a reconstrução - sempre hipotética e no campo do plausível - permite ressuscitar, ou, melhor dizendo, despertar do sono...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

4 comentários:

Júlio P. T. Zabatiero disse...

Caro Osvaldo,

Agora que trabalhamos na mesma escola, continuaremos os papos pessoal e virtualmente. Só para precisar o que discutimos e vc colocou em seu ponto 2. Eu não descarto o "autor", descarto a "intenção do autor" como fator heurístico e referencial relevante para a exegese de textos. Descarto a INTENÇÃO do autor, a partir da tradição hermenêutica de Gadamer, Ricoeur e Vattimo; da Análise do Discurso de Maingueneau e de Greimas, e da Filosofia da Linguagem e da Ação Comunicativa de Habermas, Taylor e Davidson, bem como da crítica foucaultiana à "ordem do discurso" (entre outros).
Abs

Peroratio disse...

Meu amigo Zabatiero - vejo que estás em boa companhia. Lembrei até de Hebreus, agora (rs)... Obrigado pela "precisão" dos dados informados. Agora, se me permite, poderia, aqui ou alhures, com, nesse caso, indicação do link para leitura, indicar "precisamente" qual a diferença entre não descartar o autor e descartar a sua intenção? O que de um autor, que não sua intenção, está no "papel", no texto? Descartar a intencionalidade comunicativa não é, para todos os fins, descartar o autor inteiro? E, ademais, de que modo tomar do próprio texto o que está "dito" constituiria um não-descarte do autor (ou da intenção dele), se a base para o "estar dito" é o próprio texto como fundamento de si mesmo? E, por fim, como o texto pode ser fundamento de si mesmo? Qual seria o contexto no qual se deve ler o texto - qual seu referencial hermenêutico, por assim dizer?

Por ora, vão essas brancaleônicas questões desse brancaleônico renitente...

Um abraço, meu colega de trabalho. Quem diria, não?

24 de fevereiro de 2011 15:50

julio zabatiero disse...

Pois é, agora nenhum de nós poderá fugir da "briga", do "bom combate" ...

Vamos, então, tentar responder a suas espinhosas questões. Fá-lo-ei (gostou do duplo sentido?), porém, começando com perguntas: (1) onde encontrar a "intenção" do autor senão na hipótese interpretativa do leitor? (2) Há alguma evidência material (textual/linguageira/linguística) que possa nos fazer remeter do texto ao "autor" "sem sombra de dúvidas"? (3) como manter o papel da "intenção autoral" como referencial hermenêutico se não aderimos mais à "filosofia da consciência" (ou "do sujeito") cartesiana e/ou iluminsta? Em outras palavras, como ler e seguir Morin e manter o postulado historicista e iluminista da "intenção do autor" intocável?
Para não dizer que só perguntei (rsrs) uma resposta: os autores que leio são: Michel Foucault, Gianni Vattimo, John Caputo, Jurgen Habermas, Richard Kearney, Algirdas Greimas, Dominique Maingueneau, Donald Davidson, Arnaldo Cortina, José Luiz Fiorin - dos mais recentes, que discutem essa questão do autor e sua intencionalidade. Dos mais antigos: Paul Ricoeur, Hans-Georg Gadamer.
Agora: é claro que um texto tem autor(es) e é claro que tal autor(es) tem intenção comunicativa ao escrever. É claro que há leituras erradas de textos. Não é tão claro, assim, pelo menos para mim, como a "intenção do autor" pode funcionar como âncora contextual para a definição dos limites da leitura correta.
Paro por aqui, ou o comentário vira uma "tesinha".

Peroratio disse...

Meu amigo, Zabatiero - suas provocações são boas. De fato, ontem, perguntava-me e à Bel, em que medida é possível - realmente - falar de intentio auctoris de modo mais do que filosófico. Mas a resposta não cabe aqui, de modo que comporei um post (2011/109). Há algumas coisas que você disse aqui, que não ficaram claras pra mim. Outras, bem claras - essa avalanche de autoridades... Mas não vou fugir, não. Depois, vai lá.
Um abraço,
Osvaldo

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