domingo, 19 de setembro de 2010

(2010/467) Resposta ao texto de Haroldo Reimer


1. Faz um tempo já - foi em maio. Na verdade, não me recordo de já ter respondido. Seja como for, Haroldo escreveu o texto (2010/391) Intentio auctoris como forma de intentio lectoris em 25 de maio, e ontem, passeando por sua página pessoal, encontrei a referência. Já havia lido, claro. Leio tudo que Haroldo escreve em Peroratio. Mas, como ando falando sobre isso nas aulas de Hermenêutica, deixem-me trocar algumas palavras com meu amigo.

2. Depois de um arrazoado que vai perfeitamente na msma direção em que caminham meus raciocínios, inclusive na admissão da intentio operis como "fraude", Haroldo faz um movimento curioso. Ele argumenta que, se, na prática, o leitor "histórico-exegético" não tem como ter certeza de que alcançou exatamente o sentido original do texto que lê, isto é, o sentido tal qual lá o teria colocado o seu autor, resta necessário dizer que não há, na prática, então, diferença entre esse leitor histórico-crítico-social e um leitor alegórico-literário-teológico - Gadamer aniquila Schleiermacher e Ginzburg juntos... A intentio auctoris, na prática, é uma intentio lectoris que acredita ser mais sofisticada, e o Croatto de Hermenêutica Bíblica (mas não o da Fenomenologia da Religião, decerto) sorri...

3. Eu não posso concordar com a conclusão de Haroldo, meu amigo: "então, com base no exposto, deixaria para reflexão esta afirmação: também a intentio auctoris é uma forma de intentio lectoris¸ porém, com o diferencial de que um modo metodologicamente controlado de fazer a leitura", e aceito a provocação para reflexões.

4. Acho que o argumento de Haroldo trata a prática humana de modo não diferenciado. Não resta a menor dúvida de que, seja a intentio lectoris, seja a intentio auctoris, ambas são coisas que... seres humanos fazem. Em termos de processo, ambas são a mesma coisa: atividade humana. Mas, em termos metodológicos, em termos epistemológicos, quanta diferença...

5. Nesse ponto, temos de confessar que a intentio lectoris e a intentio auctoris podem desdobrar-se a partir de três ações de leitura distintas. Primeira, a pessoa que lê automaticamente a partir de sua tradição, por exemplo, a Bíblia: diria que toda e qualquer leitura "automática" da Bíblia é um exercício (inconsciente e não-programático) de intentio lectoris - até pela ajuda formidável que Almeida dará ao leitor. Quando o cristão lê Gênesis 1,1, por exemplo, e automaticamente transfere-se para a doutrina judaico-cristã da criação, pronto, já é ele próprio a produzir sentido mas, nesse caso, equivocadamente, porque julga esforçar-se por "entender" o texto, e, por falta de metodologia e consciência crítica, vai confundir seu equívoco de leitura com "entendimento". Na prática, a mente lida com o texto como lidava com a flotresta, há cem mil anos - abre no texto a saída mais próxima, porque há perigos mortais na escuridão verde... E, convenhamos, nada é mais próximo de nós do que nossa própria tradição semântica...

6. Segundo caso: um leitor conscientemente vinculado a sua própria tradição - por exemplo, aquele que decide, conscientemente, tratar o Antigo Testamento como livro... cristão (o que ele não é). Ora, a simples decisão de, consciente, programatica e intencionalmente fazer do AT livro cristão de fato faz desse livro um livro de fato cristão, e o leitor o lerá como se cristão fosse - quando ler "alma" - que, em si, já é uma tradução traidora de nefesh, "garganta" - verá, programaticamente, aí, a "alma" pregada nos púlpitos. Todas as palavras tornar-se-ão domésticas. E não estará "equivocado", todavia... Não está na moda gastar-se duas laudas com Gadamer antes de se fazer o texto dizer o que se quer que ele diga? Não me arrostaram, outro dia, o anacronismo de Schleiermacher? Então...

7. Agora, o leitor controla sua perspectiva, programa-se metodologicamente para afulinar toda a leitura para o epicentro cultural da época em que foi escrito o texto. Agora, o leitor faz força para calar-se a si mesmo, para esquecer as doutrinas cristãs - até as judaicas! Agora, o leitor opera filologicamente, arqueologicamente, historicamente, sociologicamente, criticamente, de modo metodológica e dialogalmente controlado. Ora, não há garantia alguma de que alcançará o "pensamento" do autor - e mesmo se o alcançar, não terá como obter disso garantias irrefutáveis. É sua glória - e sua desgraça! Mas, cá entre nós, não há como dizer que isso que se acabou de descrever seja a mesma coisa que as duas coisas anteriores...

8. Não se pode dizer que a intentio auctoris seja uma "forma" de intentio lectoris. Para o fazer, "intentio lectoris" deve perder seu sentido técnico, e converter-se em expressão genérica de "leitura". Se intentio lectoris transformar-se em sinônimo de leitura, então intentio auctoris é uma forma de... leitura, logo, de intentio lectoris. Mas se intentio lectoris é a definição do controle do sentido do texto pelo leitor, que, assim, se torna único critério semântico para o descortinamento do sentido do texto, então, meu amigo, não, definitivamente não, intentio auctoris não é uma forma de intentio lectoris.

9. Até por uma questão crítica: toda e qualquer leitura programaticamente empreendida no âmbito da intentio lectoris está "certa". O que quer que você diga de um texto, se define o texto por meio do paradigma da intentio lectoris, estará certo. Não há interpretações erradas na intentio lectoris - e essa é a tragédia cômica dos púlpitos: torrentes de leituras sempre certas a se acusarem mutuamente de erradas... Já a intentio auctoris, pobre dela, alimenta-se da crítica, e de nada mais. Nunca pronunciará uma única declaração exegética com certeza. Sempre poderá estar certa, se não estiver errada, isto é, se não for demonstrado cabalmente seu erro filológico, histórico, semântico. Mas nunca poderá se converter em política. Vale desgraçadamente para ela a metáfora do labirinto, de Rubem Alves - só se sabe alguma coisa aí dentro, quando se dá de cara com a parede...

10. E também nisso reside a maior prova de que não se entendeu decisivamente até hoje a questão de fundo da intentio auctoris - a esmagadora maioria dos esforços de contorná-la dá-se pela razão de se querer evitar que uma única afirmação interpretativa ganhe status de "correta", e assim, instaure-se uma hegemonia técnica, uma arrogância política, um controle das idéias... Tolice. Não se entendeu nem uma coisa nem outra. Não é senão o esforço político por trás das intentio lectoris de púlpito, que, ao fim e ao cabo, resumem-se a operações normativas de controle social, que, projetado que é sobre a intentio auctoris, teme que ela faça melhor aquilo que a intentio lectoris faz há dois mil anos - inutilmente. Porque aconseqüência de se defender o direito de tomar para si o que era de outro (produção de sentido, cujo campeão é Justino!) é produzir esse mesmo discurso lá, onde quisera eu que só houvesse joelhos e genuflexões à minha ordem de comando...

11. A intencio auctoris é a estaca de madeira no coração vampiro da política eclesiástica. É seu antídoto. E o verdadeiro antídoto contra a norma não é a contra-nora, mas o ceticismo metodológico. Não há muros possíveis na mesa, no púlpito, a partir da exegese! Não é à toa que a filologia é o divisor de água do Ocidente - foi com a filologia que a ortodoxia revelou-seo que é: manipulação política. Nada menos do que isso. É revelador, meus amigos, revelador, extremamente revelador, que a pastoral não saiba o que fazer com a exegese... Investiguem-lhe as tripas, meus caros, porque o segredo é intestino...

12. E atenção: se algum adepto sério da intentio auctoris arvorar-se em juiz, meta-se-lhe na masmorra, que é louco ou alguma coisa pior do que isso. O que aqui se condena é o sistema.


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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