1. Há dois tipos de leitura que nos apaixonam, que mexem com nossos instintos.
2. Uma delas é aquela em que encontramos lá, sempre, o que queremos encontrar, o que "já sabemos". Se na nossa cabeça vai "a", então, quando lemos "a", nos identificamos imediatamente com a leitura, nos apaixonamos e entramos em êxtase.
3. É o caso da leitura confessional - a leitura narciso. É uma patologia, não tenho dúvida. Você só aprova, só apreende, só acalenta, aquilo que já sabe, já crê, já tem: ler é olhar-se no espelho.
4. Nesse caso, não importa o que, mas, se você lê outra coisa que não aquilo em que você acredita e que, para todos os fins, mantém sua mente aprisionada em cárcere auto-vigiado, então você detesta essa literatura com todas as vísceras, com os intestinos - enfeza-se. É uma lei noológica: as idéias nos tornam zumbis. Sob controle da idéia-confissão, o leitor nada pode fazer - se não lutar. Mas é extremamente difícil lutar. Mais ainda, libertar-se.
5. O segundo tipo de leitura que nos apaixona é aquele em que deixamos a natureza do problema vir à tona e, independente do que cremos, pensamos, acreditamos ter, esforçamo-nos honestamente para enxergar, doa a quem doer, racionalmente, logicamente, criticamente, sem qualquer trilho ideológico incontornável, o fenômeno tal qual ele se apresenta a qualquer humano na posição honesta de o olhar investigativamente, criticamente, de o ter sob o olhar tal qual ele é ao olho humano, e não tal qual ele tem de ser à doutrina.
6. Nesse tipo de leitura, você pode, inclusive, mudar completamente de idéia - entra com "a" na cabeça e sai com "z", mudado, transformado. É interessante como há quem pregue transformação pela "leitura", mas é tão bitolado que jamais mudará, ele mesmo, o que pensa: os outros é que devem mudar, para chegar, naturalmente, à imagem de si, isto é, dele. Os outros são medidos pela distância que estão dele...
7. Mas mudar de pensamento, corrigir-se, abandonar idéias arraigadas, querer abandoná-las, querer mudar de idéia, deixar-se tocar pela crítica, pelo bom senso, pela argumentação franca e aberta, essa é uma condição necessária para o segundo tipo de leitura.
8. No primeiro caso, ama-se a verdade que já se tem (que se cuida ter). No segundo, ama-se a idéia de verdade, de que é possível chegar a ela. Uma é profundamente idólatra - a primeira. A segunda, crítica - iconoclasta, até.
9. Não é difícil encontrar gente de um lado e de outro. E sempre poderá ocorrer o caso de um leitor típico do primeiro tipo mudar, abandonar seu estágio de letargia hipnótica, de self deception, e passar a operar criticamente, tanto quanto um leitor do segundo tipo cimentar-se numa posição fixa, imóvel, perder a dinâmica crítica e cair na clausura da verdade adquirida.
10. Nenhuma posição é absolutamente intransponível, inabalável. Mas são duas posições epistemológicas e psicológicas completamente diferentes. Mais - são irreconciliáveis.
11. No cristianismo (e eu, sempre voltando às origens!), há dos dois tipos - mormente, em muitíssimo maior grau, leitores do primeiro tipo, porque a própria Escritura assim os constrange - cf. Jd 3 e 5, por exemplo. Um cristão ortodoxo é obrigado a crer no que lhe ensinam. Ele se lê como livre, mas é escravo da fé - e tem de ser, se quer ser ortodoxo. A riqueza do cristianismo, todavia, não está neles, nos ortodoxos - está justamente naqueles críticos e hereges que, absolutamente desacreditados da verdade que se lhes apresenta, questionam, gritam, transformam, abandonam, reformulam, recriam. Todo confessional de hoje deve sua vida a hereges - não fora os hereges, a fé não seria nada nem próximo do que um confessional contemporâneo crê. Nicéia teria sido um malogro - e todo cristão seria, ainda, judeu!
12. É verdade que, no dia seguinte, o novo crítico e herético acaba virando coisa velha e, de novo, as mentes, ontem críticas, entregam-se à paixão de lamber o mármore da fixidez institucional. Isso porque a própria índole do sistema não é crítica, mas coercitiva e heterônoma, hierocrática e normativa, de modo que as mentes críticas são explosões heréticas momentâneas.
13. Todavia, não duvido: a riqueza do Cristianismo são essas explosões de super-novas, essas heresias, caçadas a ferro, fogo e tenaz, roda e forca. O restante é a longa noite do espelho, em torno do qual, todavia, para riqueza da noite, dançaram inúmeros pirilampos...
OSVALDO LUIZ RIBEIRO
Mas, Osvaldo, ONDE, POR DEUS, ONDE SE VAI CHEGAR COM ISSO?
ResponderExcluirSe se ama a idéia de verdade ou a possibilidade de se chegar a ela, mas, por outro lado, se classifica a chegada a ela, à verdade, como "coisa velha", "lamber o mármore da fixidez institucional" ou "longa noite", o que é que estamos fazendo? Não estamos brincando, como quem resolve aprender a língua klingon para os encontros periódicos de fãs de Star Trek?
Para quê perseguir algo que não quero encontrar, já que se o encontrar estarei cedendo à "índole do sistema"?
Sim, é extremamente difícil lutar, libertar-se, sobretudo quando o fim da luta ou da libertação é flutuar no ar, porque, se pousamos, é de novo a "mente aprisionada em cárcere auto-vigiado".
A pessoa rejeita tudo aquilo em que creu durante sua vida toda, tudo aquilo que fundamentou sua vida, seus valores, depois da "extremamente difícil" luta interior, conflitos, lágrimas, desespero, e para não chegar a nada!!! Para viver perseguindo a linha do horizonte e torcendo para que não apareça o cume do Monte Pascoal, porque, se aparecer, terá que se desviar?
Como é isso?
Dia desses eu estava decidido à busca, à libertação a partir da minha lista de livros, da sua, então fiquei pensando no que seria essa jornada, no que foi a jornada daqueles homens, daqueles pensadores, se eles encontraram algo, já que desmentidos, reinterpretados, relidos um após o outro pelos que se lhes seguiram, e se eu encontraria algo ou se chegaria ao fim da vida olhando ainda para o horizonte... e ainda desejando não ouvir jamais o terra à vista...