quarta-feira, 23 de junho de 2010

(2010/426) Textos (bíblicos) são como selvas fechadas


1. Nossa espécie forjou nossos cérebros em grande parte enfiada nas densas florestas, enfrentando muitos desafios, perigos, riscos - e de morte. A floresta precisa estar constantemente mapeada, as saídas, conhecidas, as picadas, disponíveis, os predadores, identificados. Quando nos deparamos com uma floresta "desconhecida", entre o medo terrível e a astúcia ainda mais gritante, trata o nosso cérebro de antecipar o mais rápido que ele possa as saídas, a rota de fuga. É automático. Estar perdido numa floresta densa, conhecendo de antemão os riscos de vida em que isso implica, faz o cérebro trabalhar feito um louco, atrás da saída. Para isso ele é programado, para nos pôR em segurança.

2. Por mais que seja muito "inteligente", o cérebro da gente é bem estúpido. Ele não sabe a diferença entre uma floresta e um texto, porque, na prática, as reações endócrinas, químicas e hormonais que nos tomam nas duas situações é a mesma. Para nossa mente, um texto para nós muito difícil é como uma selva fechada, cheio de perigos. E nosso cérebro leva a sério os riscos. E tratará de nos tirar dali o mais rápido possível - porque para isso foi treinado. Todavia, no caso da leitura de textos, isso é um problema muito grave.

3. O menor caminho, logo, o mais rápido, entre um texto e sua "saída" é a minha própria cultura. Quanto mais próximo de mim o texto estiver, mais rápido eu dou conta dele, e "saio". Sendo assim, o cérebro toma textos antigos e, à primeira sensação de estarmos "perdidos" - logo, em perigo -, a saída que ele abre para nós é projetar, nos termos espalhados pelo texto, significados próximos de nós. Na prática, isso significa adulterar o texto, porque os termos antigos não tinham, certamente, os mesmos sentidos que damos a eles hoje - veja, por exemplo, a palavra "espírito" (ruah) no Antigo Testamento. Mas o cérebro faz com que eu projete para a palavra "espírito", escrita há dois mil e setecentos anos, o sentido que a palavra "espírito" tem hoje. O cérebro não faz isso por mal, nem sabe o que está fazendo - faz porque está programado para nos tirar das situações difíceis. Na verdade, ele faz e espera recompensa...

4. Isso quer dizer que nosso maior inimigo na leitura de textos antigos é nosso cérebro - sem o qual, contudo, jamais leremos textos antigos. Assim, não há como nos livrarmos dele... Temos é de fazer com que ele trabalhe para nós. É preciso reprogramá-lo. Na prática, deve-se ensinar o cérebro a não ficar procurando saídas automáticas do texto. Tem-se que levar o cérebro a saber que estamos querendo "curtir" o perigo, por assim dizer, como quando o forçamos a assistir a filmes de terror. Na prática, significa, primeiro, ter consciência de que, se projeto sentidos "atuais" para palavras de textos muito antigos, não estou lendo, mas apropriando-me do texto. Em seguida, precisamos levar nosso cérebro a perder o medo de ficar nas clareiras do texto. Em lugar de procurar sofregamente pela saída, ele tem de observar cada árvore, cada tronco, cada cipó, cada ruído, o cenário inteiro. Deve-se gastar tempo na clareira, na "selva". Na prática, se não se gasta lendo um texto mais tempo do que se levou para escrevê-lo, não se tem boa chance de entender nada - conquanto o cérebro vai arrumar um jeito de nos enfiar a saída pelos olhos...


OSVALDO LUIZ RIBEIRO

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